Nas botas de Ronaldo
Ninguém poderá saber, a não ser aqueles a que o próprio confidencie os seus pensamentos, o que lhe vai na cabeça no caminho que percorre, como o vive e sente.
Eu devo ter perdido alguma coisa durante os meus cíclicos exílios noticiosos – que por vezes duram semanas a fio, confesso –, pelo que permitam-me a pergunta: Quando é que se tornou normal adivinhar os pensamentos dos outros?
O conceito alastrou-se a tudo quanto é jornal, canal televisão ou radiofónico, e aplica-se às mais variadas temáticas, mas por uma questão de atualidade e de quantidade de exemplos, vou cingir-me a um tema em particular: Cristiano Ronaldo.
Sim, eu sei que já não estamos no Mundial e que o tema é batido e que até já enjoa. Ora, é precisamente por enjoar tanto que entendo ser preciso lavar o vómito espalhado por tudo quanto é televisão, jornal, rede social e afins durante essa espécie de delírio coletivo que aconteceu em torno daquilo que é apenas um jogo.
Não morreu ninguém, não se salvou ninguém da morte certa, não se promoveu uma melhoria ou se piorou as condições de vida de um povo. Simplesmente, durante três ou quatro semanas, andou meio mundo de peito feito de razão e sapiência a adivinhar o que ia na cabeça de um homem. E isto, estranhamente (ou não), depois de o homem em causa ter esclarecido tanto sobre si e sobre a sua vida numa entrevista transmitida na televisão em horário nobre e dissecada por todos os ângulos e mais alguns.
Segue-se uma coleção de afirmações (numerei-as, são 11) para as quais peço particular atenção:
- Parece-me que o Ronaldo não estará satisfeito com a sua situação atual.
- Eu acho que o Ronaldo pensa que ainda é o melhor do mundo.
- Eu tenho a certeza de que o Ronaldo vai tentar encontrar uma solução que lhe permita terminar a carreira ao mais alto nível.
- Se perguntarmos ao Cristiano Ronaldo, ele vai dizer que acha que ainda tem lugar numa das equipas do top-five europeu.
- Ronaldo vai olhar para a sua condição desportiva e perceber se ainda tem importância para o clube onde ingressar.
- Ronaldo abdicou da seleção nacional.
- Ronaldo vai continuar na seleção nacional.
- Ronaldo está magoado com Fernando Santos.
- Ronaldo vai repensar a sua carreira profissional.
- Ronaldo vai olhar para alguém que o queira tecnicamente.
- Tenho de perceber se estou preparado e preciso de um projeto desportivo onde me consiga enquadrar e as pessoas me recebam de certa forma empenhadas também em que eu possa dar o meu contributo.
Uma dezena de comentários de várias pessoas, publicadas, ditas em direto ou gravadas. Chamo a atenção para a última, o pináculo do absurdo, em que um comentador fala como se fosse o próprio Cristiano Ronaldo.
Mas o que mais me interessa lançar para a discussão não é Ronaldo, sem descortesia, mas sim a facilidade com que achamos que sabemos o que vai na cabeça dos outros. Que eu saiba, ninguém calçou as botas de Ronaldo para se colocar inteiramente no seu lugar e poder entender as suas ações e sentimentos. Ninguém poderá saber, a não ser aqueles a que o próprio confidencie os seus pensamentos, o que lhe vai na cabeça no caminho que percorre, como o vive e sente.
Arriscar um palpite, projetando no outro aquilo com que nos identificamos, espelhando-nos no outro, etiquetando-o, representando e significando as nossas vivências tem, quanto a mim, um interesse muito discutível (os canais de televisão e jornais saberão o que fazer com o dinheiro e como esse investimento se repercute em audiência e vendas), mas esse parece ser o padrão atual da maioria daqueles que são chamados a opinar sobre assuntos da atualidade.
Se é certo que podemos, com maior ou menor acerto, conseguir identificar emoções e sentimentos em alguém, essa capacidade não nos torna titulares do conhecimento objetivo e concreto de como estão a ser vividas as experiências desse alguém.
Quando nos atrevemos a afirmar que sabemos muito bem o que alguém está a sentir, estamos a afirmar que sabemos o que é para esse alguém determinada dor ou sofrimento, aquela vitória ou alegria, bem como que conhecemos o significado que têm todas essas coisas através da sua história pessoal, dos seus valores, da sua forma de ver o mundo, e por aí fora...
O julgamento presunçoso só deseduca e inflama. É a expressão máxima do desrespeito e desprezo pelo próximo. Cada um de nós vive à sua maneira única as suas agruras e alegrias, os seus momentos de paz ou de tormento através do mundo que leva no seu coração e na sua cabeça. Imaginar que se calça as botas de Ronaldo não é uma fórmula mágica para jogar ou pensar como ele.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.