Filhos: um tesouro maior do que a própria vida

O António debate-se em todas as horas com os conceitos de justiça e injustiça. Quer perceber, quer que o mundo seja justo, quer que o mundo faça sentido.

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"Logo que a trovoada abrandou, apareceu um arco-íris muito nítido" Harald Arlander/Unsplash

1.
Voltei novamente à consciência de mim mesmo e de tudo o que ouvira durante a meia hora anterior quando a equipa do meu filho marcou um golo e se ouviram algumas palmas dispersas. Sorri e também bati as mãos uma contra a outra meia dúzia de vezes. Quando as palmas acalmaram e o silêncio se voltou a instalar nas bancadas despidas, o meu espírito voltou a errar por zonas sombrias e absurdas. E senti uma tristeza e uma revolta imensas.

As frases do António ocorriam-me incessante e devastadoramente e, então, tive a dolorosa consciência de que aquele homem que mal conheço me falara de um dia em que teve vontade de morrer. Um dia em que não conseguiu vislumbrar rigorosamente nada que pudesse trazer-lhe alegria ou aliviar-lhe a dor imensa que o corroía por dentro e o deixava exposto à lenta agonia do tempo. A ideia arrepiou-me. Esfreguei as mãos e a nuca e tentei ser racional. Afinal, o António estava vivo, ainda que tudo o que me contara indicasse que se arrasta pelos dias como quem caminha numa vereda junto a um abismo.

2.
De um lado, uma rocha impenetrável. Do outro, uma queda para a morte certa. Resta-lhe avançar ou recuar. A partir do que lhe ouvi, tudo o que quer é recuar, abraçar os filhos e ali permanecer sem deixar que os dias se sucedam.

3.
O António debate-se em todas as horas com os conceitos de justiça e injustiça. Quer perceber, quer que o mundo seja justo, quer que o mundo faça sentido, não quer que a doença lhe roube o maior tesouro que tem: os filhos.

4.
Os teus filhos são um tesouro maior do que a própria vida, António?”, perguntei, inseguro sobre a pertinência da pergunta. “Se não estiveres vivo, não tens filhos”, acrescentei, procurando conferir algum rumo à pergunta.

— Sem eles, já não estaria vivo, João —, respondeu sem hesitar, como se conhecesse a pergunta de cor.

5.
— Sinto que vou ser inapelavelmente condenado.

— Não estarás a exagerar? —, perguntei num tom calmo e arrastado, para não parecer demasiado frio ou prático. (Tenho consciência de que o fiz em vão, era óbvio que estava a ser prático.)

— Não sei.

— Se não sabes, pergunta a quem sabe.

— Já perguntei.

— Ao médico? O que te disse?

— Que é para ir vigiando.

— Então, tenta não te preocupar tanto. Aproveita os teus filhos e a tua mulher. E faz isso hoje, hoje…

6.
Olha João, hoje faço anos. E desde manhã que penso que devo viver um dia de cada vez. Mas tenho muito receio de passar por uma coisa má. Faço hoje 38 anos, amo a minha família e é por eles que quero cá ficar. Porque se não fosse o amor que sinto por eles, acho que nem me importava assim tanto de morrer. Não sei se só digo isto da boca para fora… Mas, claro, o que não quero é morrer em sofrimento.

— Ninguém quer, António.

7.
Despedimo-nos. Logo a seguir, começou a cair uma chuva miudinha e abriguei-me debaixo da cobertura da bancada. “Que merda, um gajo às vezes não sabe mesmo o que dizer…”, desabafei com um velhote de quem não sei o nome, mas que está sempre por ali a ver os jogos. O velhote ergueu as sobrancelhas e moveu a cabeça em concordância.

8.
Logo que a trovoada abrandou, apareceu um arco-íris muito nítido. Peguei imediatamente no telemóvel.

— Estou? António? Estás com os teus filhos? Leva-os à janela, procurem junto o arco-íris. Está tão bonito…


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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