A doce infância numa quinta
Memórias de um tempo feliz, cheio de animais e de brincadeiras. Sem nostalgia, mas com um sentido poético de gratidão à vida, à família e à natureza.
Alex Nogués passou parte da infância numa quinta e logo a descreve, a abrir o livro: “Imagina uma quinta. Telhados com telhas. Paredes de pedra. As galinhas, no galinheiro. E no sótão, mistério. Janelas, as certas, pequenas para as vistas. Em redor, campos cheios de promessas. E uma azinheira cheia de anos. E uma fonte cheia de vida. E um tanque cheio de abismo. E um palheiro cheio de palha. E um bosque, cantando, para se encher de crianças. Imagina uma família, sete primos e os dias. Imagina um momento perfeito. Um lugar no tempo. Imagina um paraíso a que chamamos Quinta.”
Mais adiante, a fechar, há-de dizer-nos, com razão: “Nós tivemos muita sorte: vivemos a nossa infância num tempo sem pressas e tivemos pais que nos amavam. As máquinas ainda não tinham invadido por completo o nosso lazer. O nosso sentido de conforto não requeria informação constante. A vida estava no centro.”
O modo como o autor, nascido em Barcelona, revive o quotidiano no campo junto dos seus primos remete-nos para um ambiente de descoberta, aventura e deslumbramento. Simples — “Os nossos ecrãs eram paisagens. As nossas rotinas eram silvestres. O nosso relógio, o canto do cuco e os matizes das sombras. A banheira, apenas uma bacia. Água corrente, extraordinária. De nascente. Oferecida. Entre o chão (de rocha, erva, matagal) e o céu (de sol, nuvens, estrelas), nós, o mundo e nada mais” —, mas cheio, como a “manjedoura de brincadeiras”, com bolas, raquetes, cordas e paus, em vez de feno e de grãos.
Ilustração científica e figurativa
A acompanhar estes breves textos poéticos estão as imagens de Alba Azaola, numa mistura de ilustração científica e figurativa. Cria-se uma atmosfera campestre, bucólica, com os elementos humanos transbordantes de alegria, como na imagem que ilustra “Chocolate”. Ali se retrata um dia de festa: “Representámos uma peça de teatro. Os Crimes da Rua Morgue. Tal foi o sucesso que os nossos pais e tios decidiram retribuir-nos com um dia de festa. Houve bacias com água e maçãs. Houve balões gigantes cheios de água. Corridas e gritos. Cordas, colheres e ovos. E houve vendas, biscoitos e canecas de chocolate. Muito, muito chocolate. Chocolate na orelha e na camisola. Chocolate nas mãos e nos braços, no pescoço e na testa. Chocolate na alma e nas gargalhadas.”
Inês Castel-Branco, directora editorial da Akiara Books, diz ao PÚBLICO que “Uma Quinta é um livro para todas as idades, que também pode ser muito evocador para os adultos.” E acrescenta: “Quem não se recorda de férias em liberdade, no campo, com animais à mistura, dias elásticos e muita curiosidade para conhecer tudo? Talvez hoje o mundo digital e urbano esteja a privar muitas crianças de se sujarem no campo e de saírem à descoberta do ‘mundo real’ que está sempre à espera.”
Para espelhar estes dois mundos, a editora achou “importante publicar os poemas com ilustrações que misturam o traço mais realista em grafite com as cores e aguarelas da fantasia e da lembrança”. E conclui, como objectivo: “Para que estas histórias sejam capazes de despertar em nós todas as histórias passadas e as que virão.”
Alex Nogués, geólogo, paleontólogo e especialista em águas subterrâneas, termina o livro com uma espécie de posfácio, que intitulou “O que realmente importa”. Aí, de novo com razão, escreve: “Às vezes, pergunto-me o que andamos a fazer. Inundamos as crianças com medos; as alterações climáticas, por exemplo. Exigimos que sejam elas os arautos da mudança. Os que irão proteger a natureza. Uma natureza que quase nem conhecem.”
Conseguimos adivinhar a emoção dos familiares sobreviventes ao folhear este livro, detendo-se com demora perante este “olhar cheio de amor que fez crescer o amor”.
Uma obra muito bonita. A gratidão mais ainda.