Temos medo de dizer que mudámos
Não podemos adivinhar quantas vezes nos vamos ter de reinventar, pela simples razão de que não conhecemos o futuro, nem sabemos o que aí vem.
Querida Mãe,
Sempre que oiço alguém a culpar a própria mãe por alguma coisa, penso: a que mãe é que estarão a apontar o dedo? Temos uma ideia absurda de que somos adultos estáticos e megacoerentes, mas a verdade é que estamos sempre a mudar.
Posso assegurar-lhe de que a mãe das gémeas não foi a mesma da mãe da Marta ou, mais tarde, do Mini E. Mudei como mãe — até em função da personalidade e necessidades de cada um —, mas também como mulher. Não sei se já deu por isso, mas já me reinventei mil vezes.
Quando falo de reinventar, não estou a falar de modas, do género “entra com jeans velhos e sai com vestido e botox”, mas da capacidade de me mudar sempre que foi preciso adaptar-me a uma situação nova — e os nossos filhos são motores constantes de situações novas.
Tive de me reinventar quando passei da mãe educadora de infância, que dizia frases como “os meus filhos nunca vão dormir na minha cama”. Tive de me reinventar quando percebi que o défice de sono viera para ficar. Tive de me reinventar quando ficou claro que precisava de aprender a gerir as mil opiniões com que me bombardeavam sobre como educar os meus filhos.
E reinventei-me quando deixaram de mamar e de precisar tanto fisicamente de mim, quando foram para a escola e, agora que as mais velhas entram na pré-adolescência, preciso de apagar muito daquilo que na última década aperfeiçoei, para aprender a dar-lhes mais espaço, mais privacidade, mais controlo sobre as suas vidas. O que, como sabe, é uma reinvenção exigente.
E os avós, mãe? Como se reinventam quando chega um neto?
Querida Filha Reinventada,
Tens toda a razão, andamos sempre com medo de dizer que mudámos, que já não somos os mesmos, como se fosse o equivalente a afirmar que “virámos a casaca” ou que deixámos de ser fiéis a um conjunto de valores que nos definem. Temos medo de que confundam a capacidade de nos recriarmos com um traço de personalidade mais cata-vento.
Reconheço todas as reinvenções de que falas e, no entanto, és e serás sempre a Ana, a minha Ana. Não porque te tornaste “adulta”, pondo um ponto final à adolescência onde, supostamente, temos o direito de gostar de uma coisa de manhã e detestá-la à noite, mas porque é absolutamente falsa a noção de que a partir de certa idade congelamos num papel estático, sem lugar a surpresas.
Que tédio. E que mentira.
No dia a seguir ao nascimento das gémeas, que para minha infinita felicidade me tornaram de uma vez em biavó, hesitei se podia calçar sapatilhas para vos ir visitar à maternidade. Tive medo de parecer ridícula. Uma avó de sapatilhas faria parte do código das avós ou transformava-me numa patética criatura com medo de crescer? Depois, optei por uns mocassins encarnados, mais formais, mas ainda suficientemente rebeldes para me reconhecer a mim mesma.
Felizmente, depressa percebi que, se alguma coisa ser avó me trouxera, era a oportunidade de rejuvenescer. De me reinventar, mas para mais nova!, com vontade de subir a árvores, de fazer noitadas, em que ficamos a falar até de madrugada, de voltar a acampar no jardim e a andar de baloiço.
E por dentro mudo todos os dias. Não podemos adivinhar quantas vezes nos vamos ter de reinventar, pela simples razão de que não conhecemos o futuro, nem sabemos o que aí vem. Mal será se permanecermos os mesmos quando tudo à nossa volta for diferente, amargos e tristes, adocicando o passado, como se tivesse sido sempre dourado, numa romagem de nostalgia que não leva a nada.
Ana, eu não sonho em voltar à infância, nem digo que quanto mais conheço as pessoas mais gosto dos animais, que Deus me livre. Quero muito ser avó muito, muito tempo e de muitos mais netos e, para isso, tenho de aceitar envelhecer e reinventar-me a cada dia, para, enquanto puder, continuar a mandar em vocês todos, dando-vos o prazer de poderem culpar a mãe de anteontem, a de ontem e a de amanhã.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.