Terroir, essa palavra misteriosa

Um vinho de Bragança tem tanto “terroir” como um do Douro ou do Pico. O que há é terroirs diferentes e uns podem ser considerados melhores do que outros.

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Em Portugal, o mais parecido que existe na Borgonha é o método de pontuação das vinhas do Douro para o vinho do Porto. Rui Oliveira

Os franceses têm palavras extraordinárias no universo semântico do vinho. Além de precisas, muitas possuem uma grande beleza fonética. Vigneron é uma delas. Em Português, equivale a vitivinicultor ou a vinhateiro, mas nenhum dos termos, embora significando o mesmo, revela semelhante musicalidade.

Há outras palavras que são mesmo insubstituíveis. Terroir, por exemplo, não tem equivalente em Português, nem em qualquer outra língua que não a francesa. Não está no plano da nossa “saudade”, que reflecte ao mesmo tempo uma nostalgia pelas memórias felizes do passado e uma melancolia pelo que se perdeu, sendo associada a um sentimento exclusivamente português. Terroir é diferente, não tem a subjectividade do sentimento. Mas faz parte da identidade francesa, reflectindo a importância que os franceses atribuem à terra e aos seus produtos; e, embora o conceito seja de percepção mais ou menos imediata, é necessário usar imensas palavras para o traduzir e explicar, porque envolve inúmeras intersecções.

A Borgonha, a região do mundo que mais valoriza a noção de terroir nos vinhos, criou uma outra palavra para dizer quase o mesmo: climat. De uma forma resumida, um climat é uma parcela de terra de qualidade superior, normalmente pequena e com características particulares (subsolo, solo, altitude, exposição, influência dos ventos, do gelo, do sol, das águas, etc.) que a distinguem das outras. Com base num histórico secular, os borgonheses delimitaram mais de mil “climats”, ou seja, mais de mil terrenos de excelência para a produção de vinho (hoje classificados como Património Mundial). E fizeram mais ainda: em 1930, classificaram os melhores de entre os melhores, designando apenas 37 como Grand Cru (outra palavra intraduzível e que designa os terrenos verdadeiramente excepcionais).

Em Bordéus, a ideia de terroir também é muito valorizada. Serve até, e isto é uma piada, para justificar desvios sensoriais nos vinhos. Mas, ao contrário da Borgonha, o modelo que prevalece privilegia mais o prestígio de determinados vinhos do que a terra em si. O que é classificado é o vinho, não a terra.

Em Portugal, o mais parecido que existe com o modelo da Borgonha é o método de pontuação das vinhas existentes no Douro para o vinho do Porto. Criado em 1947 por Álvaro Moreira da Fonseca, o seu método de zonagem das vinhas foi pioneiro e, apesar de ter sido objecto de algumas actualizações, continua a vigorar. Atribui diferentes pontuações a diferentes variáveis ligadas ao clima (localização, altitude, exposição e abrigo), aos solos (inclinação, natureza do terreno, pedregosidade), às condições culturais (castas, idade da vinha, compasso, armação e produtividade) e à produtividade. O método valoriza em primeiro lugar a componente climática (60,2 por cento), seguindo-se os solos (20,7 por cento), as condições culturais (15,5 por cento) e a produtividade (3,65 por cento). De acordo com estes critérios, as vinhas são classificadas por letras, sendo a letra A a mais valorizada e aquela que permite produzir uma maior quantidade de vinho do Porto em cada ano.

À partida, as vinhas de letra A são as melhores para a produção de vinho do Porto. Mas, tal como acontece na Borgonha, essa garantia não existe, porque a qualidade final do vinho não depende apenas do lugar da vinha, mas também das castas e do tipo de intervenção humana. É por isso que o conceito de terroir foi sendo aperfeiçoado e aprofundado ao longo dos tempos.

No início, começou por significar simplesmente “território”. A partir do século XIII, sempre em França, passou a designar também os terrenos aptos para o cultivo da vinha. Quando a palavra terroir foi conquistada pelo mundo do vinho, o seu significado abrangia apenas as variáveis climatéricas e geológicas. Foi esse o critério que imperou durante séculos na Borgonha, por exemplo. Nesta região francesa, a terra sempre se sobrepôs ao homem. Entre os borgonheses, existe até uma máxima segunda a qual “o vinho é o reflexo da terra e do clima. O homem não existe”. Por exemplo, o mais famoso grand cru de vinhos brancos da Borgonha, Montrachet (parcela de 7,96 hectares), vale por si mesmo. Está acima dos quase vinte proprietários que possuem lá alguns bardos. Mas, sendo o “terroir” o mesmo (uma parcela de calcário situada a meio da encosta) e a casta plantada também (Chardonnay), os vinhos que se produzem em Montrachet podem ser muito diferentes.

Obviamente que o homem existe no vinho. Sem a actividade humana, o solo, por muito bom que seja, não tem qualquer valor, é apenas pó.

Os frutos da terra, tirando os que nascem de forma espontânea, têm sempre um toque humano. No caso do vinho, o homem é decisivo na escolha da casta, no granjeio e na forma de vinificar. O elemento determinante é o uso que homem dá à terra. As vinhas de letra A do Douro podem ser muito boas para a produção de vinho do Porto, mas, muitas delas, já não servem para a produção de vinhos tranquilos, por exemplo. Parcelas e lugares que o vinho do Porto sempre desprezou podem ser hoje os melhores para vinhos DOC Douro e até para alguns vinhos fortificados.

Qualquer tentativa de definição de terroir terá, pois, que incluir o solo, o clima e o homem. Mas são tantas as interacções que acontecem numa vinha e num vinho que não é fácil chegar a uma designação simples. Para começar, devemos eliminar essa ideia obtusa do “vinho de terroir”, querendo significar um vinho de qualidade superior. Todos os vinhos têm “terroir”. Um vinho de Bragança tem tanto “terroir” como um vinho do Douro ou da ilha do Pico. Todos os vinhos possuem o seu solo, o seu clima e a sua intervenção humana (castas, métodos de granjeio e vinificação). O que há é terroirs diferentes e uns, por experiência acumulada e reconhecimento geral, podem ser considerados melhores do que outros — mas essa valoração, como se vê pelo caso do Douro, também é dinâmica.

No entanto, a ideia de “vinho de terroir” faz sentido se o objectivo for descrever um vinho que reflecte a tipicidade de um determinado lugar ou região. É nesse sentido, aliás, que vai a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), segundo a qual “o terroir vitivinícola é um conceito que se refere a um espaço no qual um conhecimento colectivo desenvolve interacções entre um ambiente e as práticas vitivinícolas aplicadas que conferem características distintivas aos produtos originários deste espaço”.

Trata-se de uma definição acertada mas demasiado rebuscada. Para melhor compreensão, talvez seja preferível definir terroir vitivinícola como a expressão de uma vinha resultante da influência dos elementos naturais e do trabalho do homem. Na sua simplicidade, esta designação encerra, na verdade, um grande mistério. Não é possível controlar, nem sequer ter uma ideia precisa, dos elementos que influenciam o ciclo da vinha e do vinho. Cada vinho é único e irrepetível, como todos nós. E é isso que torna esta bebida tão fascinante.

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