Pais e filhos podem ser amigos?
Quem é que aturava muito tempo um amigo que nos mandasse sentar direitos à mesa, sair da cama para ir à escola, proibisse de sair à noite, nos obrigasse a escrever uma carta à madrinha e a levar um bolo à avozinha?
Querida Mãe,
Já a conheço há algum tempo. O suficiente para nos podermos considerar amigas — pelo menos, o Facebook garante-me que o somos —, por isso já sei bem as frases que a fazem estremecer. Vamos testar: “Mãe, a mãe é a minha melhor amiga!!”
Ana, perdeste a cabeça?! Não tenho nada contra o conceito de amizade entre mães e filhos, mas essa história da mãe-melhor-amiga faz-me pele de galinha. Associo-a a mães-helicópteros, aquelas que sobrevoam constantemente os filhos, na ânsia de viverem por eles, de os controlarem. As vítimas são sobretudo as filhas, que estas mães querem à força toda tornar nas suas maiores confidentes, do género “Ai nós contamos tudo uma à outra!”. É claro que é natural que nos preocupemos quando se começam a tornar independentes, e ninguém resiste a ir deixando cair, como quem não quer a coisa, uns conselhos “de amiga”, mas daí a sub-repticiamente procurarmos imiscuir-nos na sua vida íntima, vai uma grande distância. Não, Ana, neste sentido, não quero mesmo ser a tua melhor amiga. Mas prometeste mais frases, experimenta lá outra...
Tem razão, mãe, a provocação ainda não acabou e o mais engraçado é que tenho a certeza absoluta de a conseguir irritar com a visão diametralmente oposta desta. O que diz a: “Amigos?! Os meus filhos não andaram comigo na escola! Sou mãe, e têm mais é que me obedecer.”
Ana, porque é que não tentas ganhar a vida como vidente, daquelas que têm uma bola de cristal à frente? Ainda por cima queres dar a ideia de que sou maluca, a contestar tudo e o seu contrário. Nem melhores amigas nem ditadoras — posso ficar-me algures pelo meio, onde supostamente está a virtude. Ou tu tendes para um dos pólos? Vamos embirrar por isto?
Não! Esteja descansada. Parece-me que quem diz a primeira frase tem uma noção muito infantil de amizade. As amizades verdadeiras são relações de profunda verdade e confiança. São pessoas que amamos, mas que não temos a presunção de querer mudar. Pessoas com quem estamos 100% à vontade para sermos nós próprios e a quem temos lata para dizer coisas como: “Não vais assim vestida, pois não?”
Visto assim, quase me levas lá. Para ser sincera, houve momentos em que, enquanto vossa mãe, pensei para comigo que não vinha grande mal ao mundo se me mentissem um bocadinho, e fizessem um tudo-nada mais de cerimónia. Mas, espera, não concordas que uma relação das mães com os filhos tem de ser diferente? Sabes que defendo que as mães não têm outro remédio senão serem tendencialmente chatas! Quem é que aturava muito tempo um amigo que nos mandasse sentar direitos à mesa, sair da cama para ir à escola, proibisse de sair à noite, nos obrigasse a escrever uma carta à madrinha e a levar um bolo à avozinha? E, no entanto, cabe-nos a nós, pais, esse papel. Além disso, numa situação ideal, não dependemos da semanada dos amigos, nem eles têm que garantir a nossa sobrevivência. Nem de aturar as nossas birras, aquelas que escondemos até dos melhores amigos.
Absolutamente! E as amigas também não têm de aturar sermões de horas sobre como não puseram a toalha no chão, têm o quarto desarrumado ou responderam torto, nem gerir as preocupações intermináveis que as mães nunca deixam de ter. Por exemplo, querida mãe, quanto tempo é que julga que eu aturava se uma das minhas amigas me estivesse sempre a dizer que tenho olheiras ou a pedir-me que mostre o dedo mindinho, como a bruxa da Casa de Chocolate, para se certificar se estou mais ou menos magrinha?
Ah, já há muito tempo que não faço isso — vá lá, Ana, estica o dedinho... Hum, ainda não estás no ponto. Pronto, então e se assumíssemos que pode (e deve) existir muita amizade entre pais e filhos, mas que é uma relação diferente?
Está-me a dar uma ideia genial, que nunca ninguém teve antes: e se lhe chamássemos uma relação de mãe? Boa? Vamos assumir que a palavra mãe já diz tudo o que precisa de ser dito. Porque, para bom entendedor, uma palavra basta...
Ana, por acaso é “meia palavra” basta, e compete-me dizer-to enquanto por cá ando, mas, sim, decididamente subscrevo o teu eureka.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.