Estarei a tomar café(ína) a mais?
Um discurso muito paternalista e chato sobre a cafeína (à semelhança do que acontece com o álcool), não vai fazer com que as pessoas que mais abusam do seu consumo o façam refrear.
Hoje em dia, um discurso que ganha muitos fãs é o de um mundo cor-de-rosa cheio de unicórnios onde todas as pessoas estão em “equilíbrio com a natureza” e se repetem à exaustão chavões como “somos uma sociedade cada vez mais doente”, mais “exposta a aditivos alimentares” e outros “químicos” e onde a cafeína, por norma, leva por tabela.
Estaremos a ingerir cafeína a mais, seja através de cafés ou de outras fontes?
Uma vez que este é um comportamento com grandes variações interindividuais, não vale a muito a pena trazer dados sobre o consumo de café per capita em Portugal comparado com o resto do mundo, mas antes falar das recomendações vigentes no que toca à cafeína e saúde humana. Aqui surge o primeiro facto de relevo. O café possui outras substâncias (polifenóis, alcalóides, vitaminas e minerais) com potencial positivo para a nossa saúde para além da cafeína. Fazendo uma súmula rápida dos teores de cafeína ajustados à porção de consumo de alguns alimentos podemos elencar os seguintes valores: 1 café expresso (60-80mg) — um café cheio tem mais cafeína do que o café curto; 330ml de café americano (150mg); 1 chávena de chá pode andar entre as 45mg (chá preto) e as 30mg (chá verde); as bebidas energéticas entre as 80mg e 160mg (conforme as latas de 250 ou 500ml, respectivamente); e 330ml de refrigerantes de cola (30mg).
É consensual em todos os estudos de revisão mais recentes que o consumo de café tem muito mais vantagens do que pontos negativos para a saúde e que o nível de consumo associado ao maior benefício anda entre os 3-5 cafés/dia (o equivalente a 200-300mg cafeína/dia). A evidência mais robusta situa-se na redução do risco de doença e mortalidade cardiovascular, diabetes tipo II, doença de Parkinson, alguns tipos de cancro (mama, colorectal, endométrio e próstata), depressão, suicídio e cálculo renal. Também ao nível da gestão de peso, a cafeína é provavelmente uma das únicas substâncias presentes em suplementos alimentares que pode dar uma ligeira ajuda na redução do apetite e no “aumento do metabolismo”, mesmo sabendo que é um efeito modesto (5% de aumento mesmo com 6 doses de 100mg cafeína diárias).
Quando consome café, boa parte das pessoas não pensa certamente no efeito que este poderá ter a longo prazo nestas patologias acima citadas, mas sim no efeito mais agudo e imediato no aumento do estado do alerta e vigília, melhoria da performance cognitiva e diminuição da fadiga, que é amplamente reconhecido. Ainda assim, uma das particularidades da cafeína é sua grande variabilidade de pessoa para pessoa quanto a estes efeitos mais imediatos.
A metabolização da mesma a nível hepático pode ter velocidades muito diferentes conforme a presença de alguns polimorfismos genéticos que podem tornar algumas pessoas metabolizadoras mais rápidas ou lentas da cafeína ingerida. É isso que explica que o pico da mesma na corrente sanguínea possa variar entre 15 minutos a 2 horas após a ingestão e que a sua semivida (tempo necessário para que a concentração no organismo diminua para metade) possa variar entre 2h30 a 4h30. O tabaco pode igualmente acelerar este metabolismo da cafeína e a gravidez pode ter o efeito oposto ao diminuí-lo e fazer com que ela fique mais tempo em circulação (daí as recomendações para grávidas não excederem as 200mg/dia). Esta é a justificação para conhecermos pessoas que conseguem adormecer facilmente pouco tempo depois de tomarem um café ou outras que mesmo passado algumas horas acabam por ter sempre muita dificuldade na indução do sono.
Ainda assim, é importante referir que não faz sentido tomar café nas últimas 6-8 horas antes de deitar (pode abrir-se a excepção para os dias em que leva trabalho para casa e tem de estar mentalmente disponível até no pós-jantar), uma vez que essa quantidade de cafeína já não terá grande impacto no rendimento intelectual, mas pode ter na qualidade do sono. Se é o gosto do café no final da refeição que lhe sabe bem, opte por um descafeinado pós-jantar e guarde alguns desses “créditos” de cafeína e respectiva sensibilidade aos seus efeitos para quando realmente precisa.
Falando dos efeitos secundários que podem ser atribuídos à cafeína, um deles é o seu potencial diurético que de facto se observa, mas por norma com valores mais elevados do que aqueles que aparentam demonstrar benefícios (400mg/dia ou acima de 6mg/kg/dia). Quanto à hipertensão, apesar de a nível agudo existir um aumento dos níveis de adrenalina e da pressão arterial, desenvolve-se uma tolerância à mesma, e a ingestão moderada de café não parece ter um grande efeito mesmo em hipertensos até porque outros dos seus compostos (como o ácido clorogénico) podem contrabalançar esse efeito.
Posto isto, o principal “travão” à quantidade de cafeína deve ser mesmo a ansiedade, nervosismo, excitação e insónia, para além de algumas manifestações gastro-esofágicas como azia/refluxo, que são sintomas clássicos de um excesso no seu consumo.
A imagem que podemos ter de pessoas altamente stressadas pessoal e profissionalmente, com grandes perímetros abdominais, fumadoras e a tomar 5-6 cafés por dia pode existir de facto. Mas no meio disso tudo, o café é certamente o comportamento mais inócuo ou até protector que ali está presente. Um discurso muito paternalista e chato sobre a cafeína (à semelhança do que acontece com o álcool), não vai fazer com que as pessoas que mais abusam do seu consumo o façam refrear.
Quem toma café em excesso, seja pelo seu sabor, seja pelo efeito positivo que sente com a cafeína, dificilmente moderará o consumo com um tom mais proibitivo. Deixar que a ciência venha ao de cima, enaltecendo as suas vantagens até aos 5 cafés/dia, deixando o último terço do dia livre de cafeína para melhorar a qualidade do sono e ter o melhor dos dois mundos, será sempre uma abordagem muito mais inteligente.