Em defesa da Fada dos Dentes
Perigoso é controlar a imaginação, racionalizar o mundo para quem o sente tanto, higienizar sonhos e cortar as asas a quem vê a vida tão a cores, uma cruzada que não pesa o que dizima, por hastear a bandeira da honestidade.
Numa travessia pelo desconcertante mundo do Facebook, uma sequência de comentários chamou-me a atenção. O assunto era essa personagem tão veemente no nosso folclore infantil: a Fada dos Dentes. Deparei-me com o debate aceso, entre mães, acerca do perigo de se sugerir às crianças a existência de seres sobrenaturais. Falava-se de desonestidade, de traição da confiança na relação com os pais, de serem impingidas mentiras aos pobres miúdos, aproveitando-se da sua inocência para os ludibriar com fantasias inapropriadas que lhes trariam pouco mais do que frustração na vida. Nunca imaginei assistir a uma discussão que tivesse como mote a extinção da Fada dos Dentes que não fosse encabeçada pela Bruxa Má. No entanto, a querela intensificava-se entre as mães. É sabido que poucos temas fazem com que os seus protagonistas se insurjam tanto como o da maternidade. Conhecidas são, para quem as atravessou, as cordilheiras do tipo de parto, as colinas da epidural, as trincheiras da amamentação, o desfiladeiro das chupetas e o campo de batalha dos métodos educativos. Acompanhei ao de leve estas contendas ao longo da minha trajectória de mãe, mas nenhum assunto ressoou com tanto fulgor em mim, dispondo-me a alistar na primeira fila do combate, como o do projecto de liquidação da Fada dos Dentes.
Cresci no meio de caças ao tesouro e em passeios no bosque ia sempre cumprimentar os três porquinhos. Procurava ovos deixados pelo coelho da Páscoa, caçava gambuzinos, perseguia arco-íris e escondia-me de piratas. Agradecia ao anjinho da guarda antes de adormecer, pedia desejos debaixo da mesa, passava o mês de Dezembro inteiro à espera do Pai Natal e acordava cedo na manhã de 25 com a urgência de ver o que ele me tinha deixado debaixo da chaminé.
Perigoso é controlar a imaginação, racionalizar o mundo para quem o sente tanto, higienizar sonhos e cortar as asas a quem vê a vida tão a cores, uma cruzada que não pesa o que dizima, por hastear a bandeira da honestidade. Dissecar fadas dos dentes e pais natais, como quem procura aligeirar as dores de um mundo corrupto, achando máculas nos píncaros da pureza remanescente, é das coisas mais perversas que tenho visto, talvez por ter crescido sempre a acreditar que no mundo cabe tanto de sonho como de regra. Os adultos devem, sim, ser cúmplices das brincadeiras, ir ao encontro das crianças e não, por já estarem tão cá em cima que se tenham esquecido de como era, obrigá-las a elevarem-se a patamares incomportáveis de uma alegada conduta ética, forçando um hiper realismo disfarçado de elevação moral.
Levado ao extremo, o que seria isto se não a proibição de brincar? E o que é brincar, se não fazer de móveis, castelos, de banheiras, oceanos e desafiar as probabilidades, fomentando amizades entre pinguins, barbies e robots? Imagino os detectives da sinceridade a cortarem um discurso ventríloquado de um nenuco com fome, para informar as crianças de que o nenuco é um objecto inanimado e que, por isso, não fala. Se querem ser honestos, sejam honestos na brincadeira.
Uma amiga contou-me que o filho lhe disse, noutro dia, ao chegar casa: “O pai do Tiago da minha turma é muito mentiroso.” “Então, filho, porquê?” “Porque disse que o Pai Natal não existe.” Ser verdadeiro é também admitir a fantasia. Esta urgência de trazer forçosamente à terra quem ainda é capaz de sonhar sem limites sob o pretexto de aliviar futuras frustrações, soa-me mais a frustrações mal resolvidas de quem o faz. E, mais, as crianças odeiam o chibo, querem é quem alinhe no jogo e levam as brincadeiras tão a sério que cortar a onda é pecado capital e não entrar no barco é naufragar sozinho. Ainda hoje, se ouço de uma família que não recebeu o Pai Natal, o meu primeiro pensamento é que se devem ter portado muito mal.
Enquanto somos crianças, a ficção e a realidade vão-se entrecruzando. E isso é o melhor da infância. Passamos pela fase da intermitência entre a magia e o real, em que procuramos a todo o custo mexer algum objecto com o poder da nossa mente. Lembro-me de, depois de ver o Toy Story, entrar de rompante no quarto, ansiosa por apanhar os meus brinquedos em flagrante. E vamos por aí fora, à procura da porta mágica, do mapa do tesouro, da transmissão de pensamentos, da levitação, do portal para outra dimensão. Criamos os nossos próprios vilões e tornamo-nos heróis nas nossas narrativas. Desde sempre brincámos ao polícia e ladrão, ao faz de conta, ao telefone estragado.
Quem defende a abolição da Fada dos Dentes, escuda-se numa postura proteccionista, de querer evitar o choque para os seus filhos, sem perceber que é precisamente com a imaginação que se faz esse amortecimento. As crianças crescem e depressa demais, aguentemos nós o peso da realidade enquanto eles podem saborear a fantasia. Imagino o que seria do filme A Vida é Bela, se aquele pai resolvesse que era mais importante o realismo do que a imaginação. Terão uma vida inteira para lidar com o ciclo fastidioso do quotidiano, não há necessidade de apressar esse momento.
O mundo vai, sim, tornando-se menos mágico. O cepticismo chega, com a desilusão de repararmos numa barba descolada na cara do nosso tio, que, de facto, se ausenta sempre que o Pai Natal dá os presentes, um olho que abre e vê os pais a entrarem sorrateiros no quarto e a porem a moeda debaixo da almofada a meio da noite, uma vassoura que, por mais força que façamos de olhos fechados, teima em não se elevar do chão. E, sim, é possível que daqui advenha frustração. Mas não é por irmos acordar que deixamos de sonhar, nem por irmos morrer que deixamos de viver. Talvez a descoberta traga mágoa, a mágoa de o mundo não ter mais magia do que a que já vem nele. Talvez seja um choque. Mas, na melhor das hipóteses, perpetuará um pacto em que pais e filhos sabem que fantasiam, mas não quebram o jogo para não desiludir o outro. Ou uma transição saudável de quem vai, aos poucos, compreendendo que a Fada dos Dentes é um gesto almofadado de amor dos pais, um prenúncio de magia debaixo da cabeça e uma garantia de que, por cada dente que cai, há um sonho que nasce.