Ser mãe é ter lições de equilibrismo
No espectro que vai entre criar pequenos ditadores e pequenos anarquistas, há muito por onde falhar. “Eduque-o como quiser, de qualquer maneira há-de educá-lo mal”, avisou Freud. A minha ideia é tentar que seja o menos mau possível.
Noutro dia, embalada pela brisa aventureira de um “e porque não?”, essa rasteira destruidora de princípios, decidi aceder ao pedido insistente da minha filha de dois anos para comer um terceiro iogurte às seis da tarde. Senti-me a revolucionária dos métodos educativos, a mãe cool, a mãe que deixa. “E porque não dar-lhe outro iogurte?”, pensei. “A mim nunca me davam outro iogurte!” (A estes pensamentos acrescem, muitas vezes, mágoas do passado e desejos de vingança inconscientes.) E acedo, ao som de aplausos interiores, calando todas as vozes julgadoras da minha permissividade e fraqueza.
“Ela já comeu dois iogurtes”, diz a regra, a suposta sensatez. Mas há sempre uma fase em que queremos fazer de modo diferente, fazer à nossa maneira, “dos meus filhos sei eu!”; “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí!” E abro, inabalável, a porta do frigorífico, projectando naquele frasco de lactose e bifidus activus toda a compensação do que foi-me proibido, dos caminhos possíveis, de uma vida cheia do que poderia ter sido. “Toma o iogurte, filha, sê feliz!” E vem a recompensa imediata de um sorriso de felicidade genuína.
Ser mãe é sentir-me triunfante e colher os louros do júbilo infantil e é também, pouco tempo depois, engolir a própria soberba e pagar a conta, ao deparar-me com a minha filha à mesa do jantar, observando a sopa, estática como um pântano. É aperceber-me de que aquele impulso libertino e inconsequente resultou na ausência de fome à hora do jantar. É olhar para o prato de sopa intocado e ter de ser eu a comê-la engolindo, a cada colher, os resquícios da culpa.
No espectro que vai entre criar pequenos ditadores e pequenos anarquistas, há muito por onde falhar. “Eduque-o como quiser, de qualquer maneira há-de educá-lo mal”, avisou Freud. A minha ideia é tentar que seja o menos mau possível.
A novidade e a surpresa que é ver as minhas filhas crescerem ao vivo e em directo, faz-me trabalhar a capacidade de improviso.
O andar suave e a voz calma a pedir que larguem uma gilette que agarraram é o derradeiro teste ao autocontrolo. Por dentro, a vontade de gritar e correr urge, mas há que calar esse animal, pois a sua libertação pode causar o susto que antecede o corte. “Dá à mãe, dá cá”, sussurro, em pânico, enquanto me aproximo devagar.
Ser mãe é ter lições de equilibrismo: entre a protecção que apetece dar infinitamente e a necessidade de criar pessoas independentes e autónomas, livres de amarras sufocantes. Entre a vontade de rir quando dizem alguma coisa indevida em público e a importância de ensinar a empatia. Entre o controlo do açúcar e a alegria que vem da abertura de um pacote de bolachas Maria.
É, às vezes, observar como se entretêm e sentir uma admiração profunda por elas, como se fossem seres idílicos, envoltos numa aura angelical. E é, logo a seguir, haver uma descida abrupta desse pedestal de candura quando tenho de acalmar um pranto incontrolável, porque não as deixei engolir uma pilha.
É um equilíbrio entre ser a má da fita e a mãe querida. É o contraste entre a necessidade de promover a liberdade artística e passar a noite a ver vídeos no YouTube sobre como tirar nódoas de caneta do sofá. Entre estimular os sonhos e explicar que não se pode ir para o jardim zoológico às três da manhã.
É ser apanhada na curva das minhas próprias verdades absolutas e ser confrontada com a falibilidade das minhas leis, como a da obrigatoriedade da utilização do babete sempre que se come, quando a minha filha vai buscar um babete para mim, denotando que lhes exijo o que não faço. É um misto entre sentir orgulho da minha pequena justiceira, a confrontar o sistema operante, e medo de que o excesso de reivindicação traga atritos à harmonia do seio familiar.
É, no fundo, tentar dar lições, acabar por levar lições e procurar lições a tirar de tudo isto.
Estávamos na praia, no Verão, e chamei a minha filha para observar o castelo bonito que alguém tinha construído na areia, coberto de conchinhas e pedrinhas. Constato que a contemplação de um castelo de areia pouco interesse tem quando comparada com a possibilidade da sua destruição. Ela corre para o castelo e pula para cima dele, numa pura manifestação de regozijo. Foi um vandalismo sem culpa: sendo fim do dia, aquele castelo já tinha sido abandonado e deixado aos cuidados das ondas, que iriam acabar por demoli-lo. Ela vai pulando, enchendo-se de areia, recolhendo as algas, as conchas e as pedras para dentro do balde.
A beleza da cena fez-me pensar: será que este é um daqueles momentos em que a vida me está a tentar transmitir algum ensinamento? Tudo indicava que sim. Afinal, estávamos na praia, ao pôr do sol, havia uma criança feliz, ondas e gaivotas. Parecia que estava dentro de um livro do Augusto Cury.
Comecei, por isso, a procurar naquela cena metáforas para a minha vida. Que lição seria aquela? Que passamos a vida a tentar construir uma estrutura sólida para os nossos filhos para que seja desmoronada por eles? Que somos todos falíveis como areia? Que a vida é uma improbabilidade estatística e que habitamos esta terra no meio do caos? Que tudo é incerto, então mais vale divertirmo-nos enquanto cá estamos? Não consegui chegar a nenhuma conclusão. Quanto à minha filha, uma coisa é certa: as pedras do castelo? Guardou-as todas. Um dia vai construir um caminho.