O primeiro amor

Apesar de tanta expansão, continuo a não saber bem o que é o amor, apenas a saber reconhecê-lo, tal como reconhecia a mochila Eastpak cinzenta do meu primeiro amor no meio de um monte de mochilas insignificantes.

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"Era o verdadeiro amor platónico, na medida em que só acontecia na minha cabeça" Debby Hudson/Unsplash

Vinte e oito cabeças olham para o quadro, enquanto o professor fala sobre potências. A potência que se eleva naquele momento é a do meu coração, ao verificar que ele já lá está, sentado no seu lugar, a rabiscar no seu caderno. Há uma espécie de ordem instalada em estarmos ali todos a escutar aquela voz monocórdica e, principalmente, em ele estar ali. Aquele amor consiste em pouco mais do que a observação da sua nuca. Nem sei bem porque gosto dele. Não sei muito sobre ele. Mas toda a gente gosta de alguém. E quase toda a gente gosta dele. Ainda tenho a voz do professor de Matemática na cabeça a exigir a nossa atenção e a garantir a importância das potências para a vida futura. Não sei como teria sobrevivido a tantas aulas de Matemática sem aquele romance hipotético a desenrolar-se dentro de mim.

Entre raparigas era comum a pergunta: “Gostas de quem?” E a resposta consistia sempre em três nomes: “Gosto do Miguel, do Luís e do Tiago.” Podia dizer que já éramos precursoras do poliamor, mas a verdade é que dois eram para disfarçar. Ou para não fecharmos o leque de opções. No meu caso, era para dissuadir a verdade de que todo o amor que tinha para oferecer estava concentrado numa só pessoa e isso era um segredo almofadado pelos outros dois nomes. Carregava aquele amor comigo, juntamente com o estojo colorido e a mochila de rodinhas.

A culpa talvez fosse do Simba e da Nala, da Dama e do Vagabundo, do Peter Pan e da Wendy. Mas ele ocupava os meus pensamentos desde que começava a escrever o sumário até ao último toque do sino.

Era o verdadeiro amor platónico, na medida em que só acontecia na minha cabeça.

Fantasiava com a hipótese de namorarmos, tão maravilhosa quanto impossível, sendo que quase não falávamos um com o outro. Para mim, o namoro era quando um rapaz punha o braço por cima do ombro de uma rapariga. Se nessa altura tivesse algum conhecimento acerca de Platão, tinha percebido que o braço dele sobre o meu ombro, a vermos um jogo de futebol e a partilharmos uma lata de Ice Tea existia, sim, mas no Mundo das Ideias. Sonhar com esse cenário deixava-me feliz. Ao mesmo tempo, nada fazia para que ele se realizasse. Para quê conspurcar aquela imagem imutável de perfeição com as falhas da realidade? Acima de tudo, imaginar aquela bela história de amor sair do lugar seguro dentro da minha cabeça para o recreio real fazia o meu coração bater demasiado depressa e ter vontade de vomitar.

Ia acumulando memórias das vezes em que ele interagiu comigo, como quando fomos da mesma equipa de volley na aula de Educação Física, ou quando ficámos ao lado um do outro na carrinha na visita de estudo. Da vez em que lhe dei uma pastilha Gorila ou de quando ele ficou a pisar o pedal do bebedouro para eu beber água. Cada gesto na minha direcção era lucro que juntava ao porquinho mealheiro do meu íntimo. Uma vez, ele deu-me um beijinho na cara e durante horas, que pareceram anos, mais nada na vida importava. Ao fim desse dia ele estava a namorar com outra rapariga da turma e eu fui chorar para a casa de banho. Foi aí que percebi que uma mesma acção pode significar coisas diferentes para os dois intervenientes.

Pode ser cruel o universo reduzir-se às mesmas 28 pessoas de uma turma. Ao dizermos às amigas os três nomes que ocupam o nosso coração, como se estivéssemos a trocar cromos, a probabilidade de termos cromos repetidos é enorme. E o cromo da minha caderneta era o que todas queriam. Repare-se que estou desde o início do texto a usar todo o tipo de pronomes e metáforas para não mencionar o nome real do rapaz e a aperceber-me de que ainda tenho tanta vergonha de o revelar como naquela altura.

Mais tarde, o mundo começou a expandir-se para lá da nossa sala de aula. Algumas raparigas desbravaram caminho para as restantes e empurraram os limites das paixões, começando a namorar com rapazes de outras turmas. A Mariana arranjou um namorado do 4.ºC e a Margarida um do 4.ºD e mostraram-nos que o amor não se pode reduzir a uma letra, é um alfabeto completo. A seguir, os limites continuavam a estender-se e as raparigas começaram a namorar com rapazes de outros anos e, até, imagine-se, de outras escolas. Havia namorados que traziam das férias de Verão e namorados que tinham conhecido em chás dançantes do Colégio Militar que, na minha cabeça, eram bailes semelhantes aos da Cinderela, com vestidos de roda, saltos altos e castelos com torreões; mas, na realidade, eram festas numa cave onde se ouvia Bob Sinclair e se bebia vodka preto.

Foi a altura em que o amor de todas nós se dispersou e deixou de se cingir a um mesmo lugar numa carteira, numa mesma sala de aula. A adolescência e as hormonas fizeram-no disparar em todas as direcções.

Apesar de tanta expansão, continuo a não saber bem o que é o amor, apenas a saber reconhecê-lo, tal como reconhecia a mochila Eastpak cinzenta do meu primeiro amor no meio de um monte de mochilas insignificantes.

Os anos passaram e o mundo é agora uma espécie de sala de aula gigante, cheio de professores de Matemática com vozes monocórdicas, de equações impossíveis e de problemas para resolver.

Graças ao meu primeiro amor tive más notas a Matemática, mas aprendi a elevar a potência que realmente importa. E, ao contrário do que dizia o meu professor, esta, sim, vamos usar para o resto da vida. Ainda bem que existe o amor. Continua a ser a melhor forma de salvar o tempo.

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