“Nenhuma criança se estraga por excesso de mimo; estraga-se muita gente por falta dele”
Os dois livros que o pediatra Hugo Rodrigues lança recentemente juntam-se aos esforços de partilhar conhecimento em saúde que tem desenvolvido quer no site “Pediatria para Todos”, quer no seu canal de YouTube.
Seguir a carreira médica não era algo com que Hugo Rodrigues sonhasse desde criança e a escolha da especialidade surgiu já estudava no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, na Universidade do Porto. Aliás, explica entre risos, a pediatria, “teoricamente, seria das últimas opções” que colocaria quando entrou na faculdade. Contudo, a oportunidade de poder “apostar na prevenção e na promoção da saúde" convenceram-no. Hoje, aos 40 anos, diz não ter dúvidas de que tomou as decisões acertadas.
Natural de Viana do Castelo, onde exerce na Unidade Local de Saúde do Alto Minho, é também docente na Escola de Medicina da Universidade do Minho e na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, além de formador pelo European Ressuscitation Council na área de Emergências Pediátricas. Ao mesmo tempo que considera um dever dos profissionais de saúde “sair dos consultórios” e educar a população, revela que o papel principal da sua vida é ser pai de dois filhos, de 9 e de 11 anos, cujos nascimentos lhe trouxeram uma nova visão da pediatria. Ávido defensor da vacinação, dá espaço para que os pais tomem as suas próprias decisões, desde que munidos de informação e não apenas opiniões.
A sua função enquanto comunicador de saúde faz-se através do site Pediatria para Todos e do seu canal de YouTube, mas o médico aventura-se agora pelo mundo dos livros com duas publicações, uma dedicada aos pais e outra aos filhos. Enquanto O Livro do Seu Bebé é um guia prático dos primeiros mil dias de vida, O Livro Mágico do Avô João tenta ajudar a explicar temas complexos aos mais novos.
É importante que os especialistas comuniquem de forma directa e aberta com o público?
Eu acho que a comunicação é um dever nosso enquanto médicos. Nós temos conhecimento específico sobre uma área e temos o dever de o divulgar para aumentar o nível de saúde da população. Sempre achei que tínhamos de sair dos consultórios, dos hospitais e aproximarmo-nos da população. O site “Pediatria para Todos” cresceu a partir daí. Foi um projecto que idealizei enquanto interno, mas que não consegui concretizar na altura. Mal acabei a especialidade achei que deveria seguir esse caminho.
Hoje em dia temos muita informação e muitos locais onde os pais a podem ir buscar. Se nós temos informação específica e técnica do nosso lado, por que não sermos nós a divulgá-la, em vez de serem pessoas que divulgam mais opinião do que propriamente conhecimento? Para além de um dever, é um prazer comunicar e poder informar e aumentar a literacia em saúde.
Nesta altura, além de exercer pediatria, gere o site, o canal de YouTube, agora lançou dois livros... Considera-se o Brazelton português?
(Risos) Não sou muito de comparações. Gosto muito do que faço, mas, acima de tudo, sou pai. Esse é o papel que destaco mais e que me ajuda muito no meu percurso profissional. Ter sido pai foi uma aprendizagem que coincidiu com a formação em pediatria, enquanto era interno. Foi um marco decisivo. O Brazelton foi um pediatra que marcou a história da pediatria moderna a nível mundial. Não tenho essa pretensão, mas, se puder ajudar pessoas, é para isso que trabalho todos os dias.
Como é que ser pai alterou a sua visão da pediatria?
Permitiu-me estar do outro lado da barricada e compreender por que é que os pais têm algumas questões. Por outro lado, pude ter conhecimento de causa das etapas do desenvolvimento, dos produtos que se vão utilizando, dos cuidados a ter no dia-a-dia, aqueles aspectos que só com a prática é que vamos adquirindo. Acho que foi uma mais valia perceber que, apesar de ser pediatra, enquanto pai também tenho as minhas questões, também tenho momentos em que não acerto como todos. Isso é mesmo assim.
E o que é que mudou na pediatria desde Brazelton?
Acho que Brazelton veio abrir mentalidades. Não foi ele que mudou a pediatria. O que nós temos de perceber é que a pediatria de agora é muito diferente da pediatria de há 30 ou 40 anos, que era muito centrada na doença. Havia muitas doenças graves e uma mortalidade infantil muito significativa. Nós conseguimos, ao longo das últimas décadas, melhorar drasticamente o panorama da mortalidade infantil muito à custa das condições socioeconómicas e das condições higieno-sanitárias da população, mas também muito à custa da vacinação e dos cuidados de prevenção. Por causa disso, a carga enorme que as doenças tinham no dia-a-dia médico dos pediatras foi diminuindo e abriu disponibilidade para estarmos atentos a outros aspectos do dia-a-dia que são igualmente importantes e que promovem a saúde como um todo.
Tais como?
O comportamento, o sono, a alimentação, o desenvolvimento, o bem-estar emocional... Tudo aspectos fulcrais no dia-a-dia das crianças. A definição de saúde, que antes era só a ausência de doença, neste momento é muito mais vasta: o bem-estar físico, psicológico, social, emocional, sexual. Faz tudo parte de um conceito muito mais global de saúde e que é o que devemos promover. Brazelton teve essa ousadia, essa visão pioneira de perceber que o caminho iria passar por essa definição mais larga de saúde. Não tenho dúvida nenhuma: a pediatria moderna é uma pediatria muito mais comportamental. Já não é uma pediatria de doenças.
A falta de vacinação é uma preocupação nos nossos dias? Chegam-lhe muitos casos de pais que têm dúvidas ou não querem vacinar os filhos?
Felizmente, em Portugal, a falta de vacinação não é um problema muito grave. Infelizmente, é um problema que tem tendência crescente. Cabe-nos a nós, mais uma vez, sair dos consultórios e hospitais e, com toda a certeza que a ciência nos traz — porque a ciência é inequívoca quanto aos benefícios da vacinação —, sermos vectores de comunicação correcta e fiável, assente em estudos científicos e não em ideias que surgem sabe-se lá de onde. Não vacinar é uma decisão individual, podemos aceitar isso, mas pode ser uma decisão irresponsável porque vai comprometer a saúde não só dos próprios filhos como de toda a gente.
Como é que se lida com um pai que chega ao consultório e diz abertamente que não quer vacinar o filho?
O público não tem esta percepção, mas a esmagadora maioria das pessoas que se posiciona contra as vacinas são os chamados ‘indecisos’. Ou seja, há pouca gente efectivamente contra as vacinas. Temos é uma franja relativamente grande de pessoas indecisas que se posiciona mais no lado contra as vacinas, mas estão sensíveis a ouvir outra opinião. É a essa franja da população que nós temos de chegar, não é à minoria que é claramente contra. Essa já tem as suas ideias preconcebidas. Faz sentido passar-lhes a informação, mas não vamos conseguir mudar a sua forma de pensar. Quando me chegam ao consultório com essas dúvidas, tento explicar os prós e contras da vacinação, estar disponível para ouvir os argumentos que me dão e tento, dentro do possível, desconstruir e perceber onde estão as falhas desses argumentos. Os argumentos contra a vacinação são todos desmontáveis, mas quando ditos com certeza parecem muito fortes.
E essa é uma das funções do seu trabalho enquanto comunicador?
Exactamente. Mostrar de forma inequívoca aquilo que sabemos sobre as vacinas hoje em dia. Temos a ciência do nosso lado. Só temos é de o saber transmitir e mostrar as falhas nos argumentos do outro lado.
Muitas vezes as redes sociais funcionam como propagadoras de todo o tipo de argumentos. A Internet veio trazer mais riscos que benefícios à parentalidade?
Isso é uma óptima pergunta. Eu faço a minha parte para melhorar esse rácio. Acho que veio trazer muita informação e muita desinformação ao mesmo tempo. As redes sociais e os profissionais de saúde em conjunto vieram fazer algo que não era um objectivo, mas que está a acontecer: castrar o poder de decisão dos pais. Isso não é correcto. Nós temos de passar a informação, é verdade, mas há sempre espaço para que os pais, com todas as informações que vão recolhendo, possam tomar as suas decisões. Se nós castrarmos essa capacidade de decisão, vamos estar a tirar algum sentido crítico acerca do que se vai lendo e, aí sim, pode ser mais prejudicial do que benéfico.
Há uma indústria em torno do bebé...
Ui... (risos)
Cadeirinhas, biberões, mesas... Como é que se distingue o que é realmente essencial?
É muito difícil porque é uma área em que as pessoas estão muito sensíveis e acabam por ceder em alguns aspectos por falta de experiência. De uma forma simples, os pais podem pensar: será que eu ofereceria este produto a um amigo meu que tivesse um filho? Será que isto lhe seria útil? Assim provavelmente vão conseguir perceber a relevância de determinados produtos.
Aparelhos electrónicos e crianças, a questão não é nova, mas agudizou-se com a pandemia. Como é que vê a entrada dos ecrãs cada vez mais cedo na vida das crianças?
Até aos 2 anos, não há vantagem nenhuma em introduzir ecrãs no dia-a-dia das crianças. Claro que com a pandemia damos espaço às videochamadas, tentar aproximar quem está distante e eu percebo essa intenção, mas isso é muito mais útil para os adultos do que para as crianças. Um bebé de oito meses pode reagir um bocadinho ao ver a cara da mãe ou do avô num ecrã, mas não vai sentir o mesmo que os adultos. Tirando isso, até aos 2 anos, o tempo de ecrã deveria ser zero. Não traz vantagem nenhuma em termos de desenvolvimento, aliás, traz desvantagens. A partir dos dois anos, é um pouco diferente. Já há jogos e aplicações que podem estimular algumas áreas do desenvolvimento e que podem ser úteis desde que sejam bem seleccionadas em termos de conteúdos e de quantidade de tempo dispendido. Diria que uma hora já é demais e uma hora em ecrãs passa muito rápido.
Há pais que utilizam estes dispositivos para ocupar os filhos. Mas é da opinião de que as crianças precisam de ficar aborrecidas de vez em quando...
Exactamente.
Porquê?
A nossa tendência enquanto cuidadores é estar sempre a salvar as crianças do aborrecimento. “Coitadinhas das crianças, não podem estar sem nada para fazer.” Estamos constantemente a intrometermo-nos na capacidade de decisão delas sem pensar no que estamos a boicotar. Quando estamos a evitar que a criança passe por momentos em que não tem nada para fazer, estamos a castrar-lhes a criatividade e a limitar muito a sua capacidade de imaginar soluções para os problemas. Não ter nada para fazer, para uma criança, pode ser um problema, mas ela é capaz de encontrar mil e uma soluções. Aliás, basta uma tampa de uma garrafa que já dá para brincar. As crianças precisam efectivamente de ter momentos em que estão aborrecidas. Não no sentido de as chatear, como é lógico, mas no sentido de as ajudar a descobrirem-se a si próprias e a descobrirem estratégias para ultrapassar os desafios que vão surgindo.
Ao mesmo tempo considera que “não existe mimo a mais”...
Sempre que os pais ouçam que estão a dar mimo a mais aos filhos, não liguem. O mimo, o contacto físico, o carinho são necessidades básicas de todas as crianças, principalmente de bebés e crianças pequenas. Os mais novos precisam de contacto físico para se sentirem seguros e tranquilos. Só assim é que vão ser felizes. Mimo a mais é um disparate, não existe. Nós devemos dar todo o mimo que pudermos às nossas crianças. Isto vai fazer com que cresçam mais felizes e até mais saudáveis porque está provado que o equilíbrio emocional é fundamental para uma boa saúde física. Nenhuma criança se estraga por excesso de mimo; estraga-se muita gente por falta dele. Contudo, mimo a mais e regras podem e devem coexistir no mesmo ambiente. Ou seja, dou todo o mimo e carinho, mas há momentos em que vou estabelecer limites às atitudes dos meus filhos.
Quais são as principais dúvidas dos pais que tenta responder com O Livro do Seu Bebé e porquê o enfoque nos primeiros mil dias de vida das crianças?Os primeiros mil dias correspondem ao tempo que dura a gravidez e os primeiros dois anos de vida. A investigação científica tem demonstrado que este é um período crítico em termos de crescimento, desenvolvimento e programação futura da saúde das crianças. Dou exemplos muito simples: uma criança aos 2 anos tem aproximadamente metade da altura que vai ter na idade adulta. O cérebro tem cerca de 80% do tamanho que irá ter. Estamos a falar de uma altura em que o crescimento físico e, sobretudo, o crescimento cerebral, e tudo o que isso acarreta, se desenvolvem drasticamente. Por outro lado, é também no período entre a gravidez e os 2 anos em que a criança vai desenvolver a maior parte das competências que vão ser úteis no futuro e que vão servir de base à sua inteligência, à sua habilidade motora, à habilidade social. Nesses primeiros mil dias vamos conseguir dotar a criança de um reportório de competências que vão fazer dela muito mais capaz seja do ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista social. Este é um período crítico de programação futura. Nós conseguimos, com algumas atitudes relativamente simples no dia-a-dia das crianças, alterar a expressão dos genes e o funcionamento das células para toda a vida. Para mim faz todo o sentido comunicar estes conhecimentos e fazer com que os pais percebam que este início de vida pode fazer toda a diferença no futuro da saúde dos seus filhos.
O livro tem um cariz muito prático. Isso pode evitar idas desnecessárias ao pediatra? Vai-se demasiado ao pediatra?
O objectivo é dotar os pais de um conhecimento muito alargado e com conselhos que possam efectivamente pôr em prática no seu dia-a-dia. Claro que se as pessoas tiverem mais conhecimento, vão recorrer menos aos serviços de saúde, mas nunca foi um objectivo do livro substituir consultas médicas, tal como o site não tem essa pretensão. Isso não seria responsável. Se me pergunta se as pessoas vão demasiado ao pediatra, eu colocaria a questão de outra forma: se as pessoas recorrem demasiado aos serviços de urgência dos hospitais. E aí eu acho que sim. Acho que uma percentagem muito significativa das nossas idas às urgências são situações que não necessitam propriamente do recurso a um hospital. Contudo, entendo que da forma como está estruturado o Sistema Nacional de Saúde, nós praticamente só temos pediatras nos hospitais. Os outros são privados, têm um custo acrescido. Assim eu percebo que as pessoas se sintam mais seguras em ir às urgências.
Como pai, compreende o outro lado da secretária do consultório…
Percebo. Acima de tudo, temos de valorizar as queixas que nos colocam. Mesmo que pareçam descabidas, as pessoas colocam porque são importantes para elas naqueles momentos. Mais do que achar as queixas descabidas, nós temos de passar informação correcta que ajude os pais a descobrir que essas preocupações não são assim tão preocupantes.
Numa altura que lança O Livro do Seu Bebé surge também O Livro Mágico do Avô João, que é narrado pelo Avô João. É o avô dos seus filhos?
(Risos) Sim, o Avô João é o meu pai, a Avó Céu é a minha mãe. O Diogo e o Gonçalo são os meus filhos e a Inês e a Margarida são as minhas sobrinhas. Sempre gostei de inventar e contar histórias aos meus filhos e já as escrevi há algum tempo. A ideia foi usar situações que se passam no dia-a-dia dos meus filhos ou dos amigos deles. Neste livro, os quatro primos vão comer a casa dos avós e trazem todas as semanas um amigo diferente que tem sempre consigo algo que não conhecem, o que vai ser explicado pelas histórias do Avô João. Acredito que muitas crianças, ao ler o livro, vão sentir-se confortadas porque se revêem naquelas questões.
Ou seja, tenta-se explicar às crianças um conjunto de situações que talvez os pais não saibam explicar?
Exactamente. Eu tentei pegar em temas recorrentes que os pais trazem para as consultas e que as próprias crianças vão demonstrando como preocupações. Vamos tentar normalizar algumas situações que causam ansiedade às crianças e aos pais. Eu tentei aliar um pouco a versão “Hugo pai” à versão “Hugo pediatra” e juntar os dois num livro só.