Não ser racista
Tornamo-nos racistas porque o mundo é demasiado grande para gostarmos de toda a gente, e para a maioria de nós valorizarmo-nos implica diminuir os outros.
Vamos fingir que estamos a pensar neste assunto pela primeira vez: o racismo. É bonito que as vozes anti-racismo estejam a gritar tão alto e em uníssono que conseguem até abafar tantas vozes racistas do nosso presente: Trump, Bolsonaro, André Ventura e todos os que os apoiam, sabendo que estes são racistas. Mas parece-me importante que rebobinemos um pouco a cassete.
Nós não nascemos racistas, mas tornamo-nos todos racistas. E não é fácil não ser racista. É um exercício exigente e de uma complexidade proporcional à nossa educação. Tornamo-nos racistas, porque o mundo é demasiado grande para gostarmos de toda a gente, e para a maioria de nós valorizarmo-nos implica diminuir os outros. É muito complexo nós gostarmos de viver e gostarmos de nós sem considerarmos a nossa vida mais importante de que outra qualquer. A isso acresce o medo do desconhecido. Lembro-me, por exemplo, da primeira vez que aterrei num aeroporto em África. Tive medo. Não sabia explicar porquê, mas tive medo. Preferia estar rodeado de brancos, mas, como estava rodeado de pretos, tive medo. E achava que não era racista.
Os piores preconceitos são aqueles que achamos que não temos. O primeiro passo é assumir que somos todos discriminadores compulsivos, para depois conseguirmos dissecar as nossas próprias injustiças e incoerências. São muito poucas as pessoas que conseguem não ser racistas na perfeição e devemos lutar toda a nossa vida para chegar o mais perto humanamente possível dessa utopia.
Não ser racista é perceber que a palavra “descobrimentos” se escreve com morte, violação, tortura, escravidão de pretos e não só, e em boa medida fomos nós que os levámos e os vendemos para a América que agora arde, como mercadoria, no maior genocídio da história.
Não ser racista é perceber que, quando formos fazer as contas às mortes pelo SARS-CoV2, teremos de incluir as consequências invisíveis dos milhões que vão morrer à fome, pela interrupção das campanhas de vacinação, prevenção e tratamento de doenças altamente mortíferas, mas que não são no nosso quintal, e por isso não as contamos.
Não ser racista é aceitar que a nossa filha se case com um muçulmano, um cigano, um chinês, um preto, um indiano ou um esquimó e termos a capacidade de avaliar a pessoa para além dos rótulos – porque as pessoas só se deviam “classificar” em níveis de bondade e maldade.
Não ser racista é perceber que não é justo e temos de fazer “qualquer coisinha” em relação ao facto de que há zonas do planeta em que a probabilidade de a mãe morrer no parto ou o bebé à nascença é centenas de vezes superior à nossa. E todas as vidas contam, como se diz agora por aí.
Não ser racista é indignarmo-nos por escassearem opiniões, manifestações, hashtags ou fotos nas redes sociais sobre a crise humanitária no Iémen, os mortos por malária, a violência sexual no Congo, o desgoverno da Líbia, a pobreza do Sudão do Sul, ou o morticínio da guerra da Síria que teima em não terminar... Entre tantos outros exemplos.
Não ser racista é acreditar com toda a força que os filhos dos outros têm tanto direito à vida como os nossos filhos.
Não ser racista é uma luta difícil, mas imperativa que nos obriga a olhar para dentro e para fora intensamente, e despirmo-nos de muitas características que nos moldaram enquanto sociedade e enquanto indivíduos.
Não ser racista é difícil, mas merece todo o esforço.