Sem computador, alunos falam com professor no WhatsApp e vêem aulas na TV
Aulas na RTP, material de escolas virtuais, TPC partilhado com a câmara do telemóvel – quando não há computador para todos, garantir que grande parte dos alunos continua a ir à escola é um esforço multidisciplinar que envolve várias tecnologias.
Só dois dos alunos da turma de 6.º ano da professora Isabel Elvas, na Amadora, é que têm um computador para usar em casa — mas não é por isso que estão sem aulas. Falam com a directora de turma pelo WhatsApp, assistem ao conteúdo do #EstudoemCasa na RTP Memória, e respondem aos desafios dos professores que vêem na televisão com o telemóvel.
“As aulas na RTP têm sido extremamente importantes para garantir que a turma continua a aprender algo e está em contacto com a escola. Os alunos não estavam preparados para um ensino digital”, partilha com o PÚBLICO a directora de turma. “Peço que vejam as aulas na televisão e falamos sobre elas no WhatsApp. Dá para perceber que estão a ver e gostam: dizem-me muito que as aulas são ‘fixes’ e que a maioria dos outros professores da turma também as usa.”
Há mais de duas décadas que Isabel Elvas, de 62 anos, ensina música no Agrupamento de Escolas Miguel Torga, na Amadora, que integra o programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), uma iniciativa governamental para prevenir o abandono escolar em territórios economicamente e socialmente desfavorecidos. Embora a escola do ensino básico do agrupamento esteja equipada com quadros interactivos e os alunos mais velhos sejam capazes de passar horas nas redes sociais, há turmas onde muitos não têm computador próprio em casa.
“Aquilo que todos tinham era televisão e facilidade de acesso ao WhatsApp”, resume Isabel Elvas. Foi a pensar neste tipo de crianças, sem equipamento informático ou acesso à Internet, que o Ministério da Educação desenvolveu a solução #EstudoemCasa, com a RTP como parceiro de produção. Os conteúdos educativos, organizados em aulas de 30 minutos, não devem substituir as aprendizagens integrais do Ensino Básico e ainda há zonas sem acesso à Televisão Digital Terrestre (TDT), mas para muitos as aulas na RTP tornaram-se a principal forma de contacto com a escola.
“Esta semana, por exemplo, os professores de educação artística na televisão construíram instrumentos musicais a partir de conteúdo reciclado. Propus aos meus alunos de 6.º ano verem, tentarem fazer o mesmo e enviarem-me um vídeo ou fotografia”, explica a professora que gere uma turma de percurso escolar alternativo, com alunos que já somam pelo menos duas retenções, e dá aulas de música a turmas de 6.º ano e 2.º ano. Garantir que os mais novos continuam a fazer as tarefas é mais difícil, com alguns pais que não respondem às mensagens enviadas pelos seus directores de turma.
Nestes casos, Isabel Elvas vê o #EstudoemCasa como fundamental: “É fácil estar atento às aulas na RTP, porque são curtas e incluem conteúdo muito variado. Há vídeos, muitas imagens, animações e desafios. O conteúdo nunca é igual.”
RTP não cria ou edita aulas
São os próprios professores que aparecem nas gravações do #EstudoemCasa que seleccionam e organizam todo o material, esclarece a equipa da RTP ao PÚBLICO, notando que “não há qualquer edição ou manipulação” dos conteúdos trazidos pelos docentes. Grande parte vem de plataformas de ensino virtual como a Escola Virtual, da Porto Editora, ou a Aula Digital, da Leya, que decidiram disponibilizar o acesso gratuito aos seus serviços digitais até ao final do ano lectivo devido à crise de covid-19.
“A nossa ideia é transmitir àqueles alunos que não têm possibilidade o material que outros alunos, com tablets, computadores e Internet, têm, e criar aulas mais tecnológicas e lúdicas. Também utilizamos muito o RTP Ensina”, partilha com o PÚBLICO Marta Andrade, uma das duas professoras responsáveis pelas aulas do 5.º e do 6.º ano de português na RTP. Além de aparecer duas vezes por semana na televisão, a professora de 2.º ciclo continua a dar aulas síncronas à distância às suas cinco turmas no Colégio Atlântico, no Seixal.
O tempo que sobra para a família é escasso, admite, com parte dos fins-de-semana preenchidos a preparar as aulas que lecciona online e na televisão. Apesar de filmar duas aulas de cada vez nos estúdios da RTP, demora duas semanas a escolher, organizar e adaptar o conteúdo.
“Antes de filmar, temos de fazer um roteiro para a DGE [Direcção-Geral de Educação], e muitas vezes é um eterno pingue-pongue entre pequenas correcções e edições”, justifica a colega Patrícia Farias, que aparece ao lado de Marta na televisão, e também continua a dar aulas no Colégio Atlântico. “O conteúdo virtual que já foi feito e revisto pelas editoras tem sido uma grande ajuda”, reconhece a professora.
É material que conhece bem. Há cerca de cinco anos que o Colégio Atlântico, no Seixal, trocou livros físicos pelos virtuais, uma iniciativa dos próprios alunos para aproveitarem as condições a que tinham acesso para poupar o ambiente. “Não temos acesso especial. Se precisamos de algo extra, fazemos”, esclarece Farias. “Mas cerca de 90% das animações que eu e a Marta utilizamos no #EstudoemCasa também estão disponíveis para qualquer professor ou aluno com acesso a um computador e Internet.”
Mais de um milhão na Escola Virtual
Quem pode já está a utilizar. Desde que as plataformas de ensino estão disponíveis gratuitamente, o número de utilizadores de ambas subiu a pique, com a Aula Digital, da Leya, a somar mais de 800 mil utilizadores activos (10 vezes mais do que o habitual), e a Escola Virtual, da Porto Editora, a ultrapassar um milhão de utilizadores, com níveis de acesso sete vezes acima dos habituais.
“A vantagem deste tipo de conteúdo é diminuir a monotonia das aulas, com quizzes, vídeos e jogos, até porque o apelo do digital por si só não dura para sempre. Vejo com os meus próprios filhos que estavam muito interessados nas aulas online, mas já perderam a motivação inicial”, sublinha Elisabete Jesus, professora de história do ensino básico e secundário e uma das autoras dos conteúdos de História da Porto Editora. Cada bloco de conteúdo pedagógico – que inclui o manual, livros de fichas, cadernos de apoio ao estudo e conteúdo online – demora pelo menos dois anos a ser criado pela equipa.
“Eu proponho o conteúdo para o manual, penso logo num recurso digital associado e falo com os designers da editora que o tentam concretizar”, detalha a professora. “Por exemplo, para um dos conteúdos digitais sobre o 25 de Abril pensei em dar vida a uma ilustração sobre o dia da revolução ao pôr as figuras a falar entre si, como uma banda desenhada, e Grândola, Vila Morena como música de fundo. São elementos que permitem reviver o passado.”
Além de módulos online e quizzes, a própria plataforma da Porto Editora funciona como um jogo em que os alunos acumulam crachás com base no número de testes a que vão respondendo.
O processo – que junta artistas, programadores e actores de voz – não é fácil. “Não seria exequível a RTP ter desenvolvido todo o conteúdo que apresenta no #EstudoemCasa no tempo que existiu”, frisa Rui Pacheco, director do Centro de Multimédia da Porto Editora. “É um processo moroso, que implica investimentos avultados e uma plêiade de profissionais muito extensa, uma vez que estão em causa não só competências e aptidões do foro científico e pedagógico mas também do foro audiovisual, de arquitectura de soluções de ensino à distância, de programação e gestão de sistemas.”
Com a explosão recente de utilização, as plataformas também estão a aprender muito sobre a forma como os alunos as usam. “Antes não havia necessidade de interacção entre utilizadores da plataforma. Os alunos viam o conteúdo em casa, sozinhos, ou projectado em sala de aula”, diz Francisco Heitor, responsável de marketing e vendas no grupo Leya, que desenvolve a Aula Digital. “Com as aulas à distância, desenvolvemos um mural de comunicação, que lembra murais das redes sociais, para os professores partilharem informação para os alunos comentarem.”
Ao serem integrados no #EstudoemCasa, exibido pela RTP, os alunos mais carenciados passam a ter uma janela para este mundo, numa altura em que muitas escolas e lares ainda não estão preparados para um ensino digital.
“Acredito que aquilo que está a acontecer agora vai influenciar muito o ensino, mas há muitas alterações que têm de ser feitas e essas terão de vir da parte governamental”, partilha Patrícia Farias, que se tornou uma presença semanal no ensino do Português na televisão. “Um ensino mais digital para todos implica garantir o acesso à Internet e computadores. Ainda não temos isso.”
“Tem sido um desafio interessante”, resume, por sua vez, a professora de música da Amadora, Isabel Elvas, que acredita que a situação actual mostrou novas formas de usar as tecnologias à disposição dos alunos (como televisões e telemóveis) para continuar a dar aulas. “Espero que as sessões do #EstudoemCasa se mantenham, mesmo que seja noutro formato, porque podem ser um bom serviço de revisão e apoio aos estudantes que não têm tanto apoio em casa.”
Correcção 15/05/20: A versão inicial não identificava o Ministério da Educação como responsável pelo #EstudoemCasa
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