Com três guarda-chuvas na mão, Andreia Raposo faz o check-in num hotel em Lisboa, juntamente com o presidente da casa do povo da freguesia onde vive em São Miguel, nos Açores. Ao subir para o quarto, sem malas, a funcionária do hotel tenta descodificar a situação enquanto Andreia explica que veio da sua primeira sessão de quimioterapia. Ao abrir a porta do quarto, surge uma sala de aulas por onde Andreia já passou. O cenário faz parte de um dos muitos sonhos “estranhos e vívidos” que Andreia Raposo, professora de 37 anos, tem tido. Não só não tem nenhum relacionamento com o homem em questão, como não tem cancro. “São momentos assustadores. Acordo inúmeras vezes aterrada”, conta ao PÚBLICO.
“Eu comecei a estranhar quando dei por mim a lembrar-me dos meus sonhos”, afirma Filipe Santiago Lopes, “em particular um que aconteceu mais do que uma vez”. Nesse, diz o consultor de comunicação de 22 anos, há uma casa com um corredor comprido e sem janelas, no meio de um cenário de guerra, cinzento e frio. Nas portas da habitação destruída estão familiares e pessoas da sua vida, mas todos eles muito distantes. “Na segunda vez que tive este sonho já havia um amigo meu numa cadeira de rodas a precisar de ajuda”, reconta.
Desde o início do confinamento que surgem relatos, um pouco por todo o mundo, de um volume anormal de “sonhos estranhos” ou “vívidos”. O número de pesquisas no Google sobre o termo “weird dreams” (sonhos estranhos) mais que duplicou face ao mesmo período do ano passado, em todo o mundo.
O tema dos sonhos varia. Há quem sonhe com o actual estado de confinamento, outros sobre o mundo antes da pandemia. Mas muitos recontam pesadelos. Nas redes sociais Twitter e Reddit multiplicam-se os utilizadores que dizem passar pelo mesmo. Já o blogue “I Dream of Covid” agrega as fantasias do sono de quem as quiser revelar.
Tudo isto é “perfeitamente normal no momento em que vivemos”, afirma a psicóloga Maria Serra Brandão. “O stress, a ansiedade, o isolamento, os piores hábitos de sono”, tudo isso contribui para esses sonhos. A especialista em sono começa por explicar que todos sonhamos, independentemente desta fase de pandemia. Contudo, o lembrar dos sonhos torna-se “mais frequente” quando temos pesadelos e acordamos repentinamente e ansiosos, por exemplo. Numa altura em que a própria qualidade do sono é afectada, “é normal que acordemos mais vezes” e, por isso, nos lembremos mais dos sonhos.
A falta que os outros fazem
A componente “bizarra ou mais criativa” surge durante o sono REM (ou “rapid eye movement” ou movimento rápido dos olhos). Todos passamos por este tipo de sono, explica Maria Serra Brandão, e é numa fase mais avançada da noite que ele se torna mais presente. Esta fase do sono funciona como um “ciclo de lavagem das emoções” vividas no dia-a-dia e é quando surgem os agora intitulados “Covid Dreams”.
Numa altura de isolamento, a falta de experiências novas, a monotonia dos dias e “a falta de contacto com os outros, sendo nós seres sociais” faz com que haja “uma falta de conteúdo” para “entreter” o sono REM. Isto significa que “o cérebro vai buscar memórias antigas e passa-as por essa fase bizarra do sono”, explica Maria Serra Brandão. Este processo pode explicar o porquê de se sonhar com pessoas com quem não se contacta há vários anos ou invocar momentos vividos com maior emoção.
Por outro lado, o próprio stress, ansiedade e incerteza, normais desta época, servem de matéria-prima para os sonhos. Apesar de sublinhar a importância de nos mantermos informados, a especialista recomenda moderação nas horas passadas a “ver e ouvir cenários que nos trazem tanta ansiedade”, sobretudo antes de ir dormir. “Podemos achar que isso não tem problema, mas esses cenários são logo digeridos pelo sono quando vamos para a cama”, afirma. O “estar envolvido” na informação da pandemia tem correlação com sonhos mais intensos sobre o vírus.
Numa época que só por si torna o sono mais difícil, o cenário complica-se quando são descuidadas as boas práticas para uma noite bem dormida. Desde a falta de actividade física, refeições menos saudáveis, consumo de álcool ou de cafeína, são várias as “asneiradas” que contribuem para uma pior saúde do sono, diz a psicóloga. “Adormecer a ver séries ou filmes só piora a situação, porque o sono digere rapidamente um conjunto de informação e quando vamos para a cama parece que já não temos sono nenhum”, explica. A manutenção destas “más rotinas pode levar a casos de insónias crónicas e criar maiores problemas a longo prazo”, avisa.
A especialista admite os episódios de insónia sejam mais normais nesta altura, mas reafirma a necessidade de encontrar “o foco que os causa” e não camuflar com medicamentos que não sejam prescritos por profissionais. Para combater estes desafios, as recomendações passam, não só por uma estrutura mais rígida de rotinas, mas também apanhar luz do sol de manhã, tentar manter alguma actividade física e tentar manter uma atitude positiva. É importante, também, “manter o contacto com os outros, mesmo que por meios virtuais” para um maior equilíbrio emocional.
Crianças devem ser mais protegidas
Os problemas com sono e sonhos não se limitam aos adultos, lembra Filipa Sommerfeldt Fernandes. A especialista em sono infantil sublinha a importância de os pais não sujeitarem constantemente os filhos aos cenários de morte e perigo associados ao vírus. “As crianças não têm a mesma capacidade de entender e gerir estes problemas que os adultos”, sublinha. Ver notícias enquanto os filhos não estão presentes ou tentar explicar a actualidade de uma forma mais “suave”, são alguns dos conselhos dados aos pais.
Quanto aos sonhos que as crianças possam ter, a especialista afirma ser importante “reconfortar à noite e explicar de dia”. Os pais devem tentar manter a autonomia dos filhos no que toca ao sono, mas, no caso das crianças mais novas, “podem arranjar estratégias como bonecos mágicos, com poderes” que, associados ao poder imaginativo das crianças, contribuem para noites mais tranquilas.
As rotinas de sono são essenciais também nas crianças. “Os dias são todos iguais e, por vezes, relaxamos nos horários. Damos por nós e são 23 horas e os nossos filhos estão de pé, quando costumavam ir dormir às 21 horas”, lembra a Filipa Sommerfeldt Fernandes.