Rogério do Redondo: reabriu o primeiro restaurante português que serviu Anthony Bourdain
Feijoada, massa à lavrador e rancho, bolinhos de bacalhau, costela mendinha e vitela, tripas, cabrito e, quem sabe, aquela cabeça de pescada cozida. A cozinha do Rogério do Redondo, que existe desde 1985, é a mesma — as cozinheiras também.
“Perguntam-me frequentemente por que é que os veganos são os inimigos de tudo o que há de bom e decente e têm que ser perseguidos e mortos para que os seus genes não passem para futuras gerações.” Para termos acesso à resposta basta puxar a fita atrás ao primeiro dia de Anthony Bourdain (1956-2018) em Portugal, onde depressa aprendeu que os portugueses não desperdiçam nada do animal. Ainda não tinha recuperado do jet lag e já estava sentado à mesa do Rogério do Redondo a saborear uma cabeça de pescada estendida numa travessa e rodeada por batatas, cenouras, cebolas e couves cozidas. “Comeu petinga, provou lampreia, comeu tripas à moda do Porto. Lembro-me de ele comer o olho da cabeça de pescada. Não é normal um norte-americano chegar a um restaurante e comer o olho da pescada fresca... É sinal que sabe o que é bom”, recorda à Fugas Rogério, proprietário do restaurante portuense que acaba de reabrir no sítio do costume.
Bourdain sabia “pouco de Portugal”. Em 2000, teve como guia José Meireles, antigo patrão no nova-iorquino Les Halles, amigo e anfitrião no Porto para dois episódios (Cod Crazy e Stuffed Like a Pig) da primeira temporada do primeiro programa que apresentou, A Cook's Tour. Conheceu o Bolhão e as folhas de bacalhau salgado, esteve na Confeitaria e na Pérola do Bolhão, passeou no Cubo da Ribeira, ainda com trânsito automóvel e mercearias tradicionais. Sentou-se à mesa no Rogério do Redondo, no número 19 da Rua Joaquim António de Aguiar, colado à Praça da Alegria, e mastigou um olho de pescada, um momento “etéreo” que precedeu a prova de tripas à moda do Porto “com mão de vaca”. Jantaria mais tarde na Casa Aleixo, onde comeu filetes de polvo e arroz de feijão, bolinhos de bacalhau e salada de feijão-frade.
A história do Rogério do Redondo tem agora um novo capítulo. Em 1985, Manuel do Redondo, que já tinha O Redondo na Avenida Fernão de Magalhães, juntou-se com Rogério Vieira de Sá e abriu um segundo restaurante, que ao fim de quatro anos passou a ter um só dono, Rogério do Redondo. Em 2011, Rogério foi para Angola e vendeu o restaurante, que acabaria por fechar em 2015. “Regressei no ano passado e reabrimos no mesmo sítio”, conta Rogério, cuja família está no negócio dos vinhos desde o seu bisavô.
Nos anos oitenta, São Vítor era uma zona “um bocado afastada” da cidade. Ainda parece ser. “É tudo gente impecável”, diz Rogério, que jogou basquetebol ali ao lado, no Vasco da Gama. “A drogaria continua, o café continua, a senhora ainda vende hortaliças na praça, a pensão continua. As pessoas que eu conhecia continuam aqui”, aponta. Quando abriu, em 1985, esta casa nortenha de comidas superlativas servia sobretudo almoços e lanches. “Tínhamos ali onze pipas de vinho. Antigamente vendia-se muito vinho encascado, muito vinho de pipa. Nesses anos, quem tivesse bom vinho tinha o restaurante feito. Vinho de pipa, vinho a copo, vinho à caneca... Perguntávamos ao cliente ‘é branco ou tinto?’. Lá havia um de vez em quando que pedia uma garrafa. No início dos anos oitenta qualquer pessoa conhecia todas as marcas de vinho portuguesas. Havia muito poucos engarrafados. Ao nível de vinhos, isto evoluiu muito, foi um salto enorme.” O restaurante abriu de cara lavada — projecto do arquitecto João Pedro Serôdio. Tem uma garrafeira gigante, um armário especial para carnes maturadas e até um Josper, combinação elegante entre uma grelha e um forno. As toalhas de pano substituíram as de papel. “Mas a cozinha é a mesma”, sublinha.
Lá, Fátima, 62 anos, prepara o chispe. “Hoje [terça-feira] é dia de fazer feijoada”, avisa a cozinheira, que esteve na cozinha todos os dias do Redondo — tem em Emília uma fiel ajudante. “Estive até ao último dia. É uma história de vida. Quando isto fechou, fiquei doente. 15 de Agosto de 2015. Já sabíamos que íamos de férias permanentes.” Quarta-feira “pode ser uma massa à lavrador ou um rancho”. Quinta é “dia de tripas”. Sexta é dia de “bolinhos de bacalhau com arroz do mesmo; há sempre assado, costela mendinha ou vitela”. E sábado voltam as tripas “e talvez cabrito”. “Na comida não mudou nada”, sentencia Fátima, no Porto desde os 11 anos. “A minha patroa não gostava de cozinhar e por isso meteu-me logo na cozinha”. “O segredo”, diz, “é a mão e a qualidade dos produtos.” Os fornecedores, completa Rogério, “são os mesmos há anos”. “São os mesmos peixes, as mesmas carnes, os porcos, os galos... Através das compras sabemos quais são os bons restaurantes da cidade”, diz. Ao longo da conversa vai enumerando “alguns tascos” do Porto — e confundindo o nome do restaurante com o do proprietário que lhe deu fama.
Quando Anthony Bourdain comeu no Rogério do Redondo
“Em Portugal”, como disse Bourdain na sua primeira visita, dividida em dois episódios, “a comida é uma questão de família, amigos e tradições”. Nessa primeira visita, assistiu a um dilúvio no Douro, comeu bacalhau na Quinta da Lama, em Amarante, onde participou numa “rápida e eficaz” matança do porco, aberto e regado por dentro com vinho tinto. Bourdain comeu até cair ("Talvez estejam a engordar-me para a próxima matança"). Viu a perna do porco ser “esfoliada” antes de ser coberta de sal, jogou à bola com a bexiga do animal e descobriu que havia vestígios de porco até na sobremesa (o pudim abade de Priscos “devia ser ilegal"). Deixou uma frase no Rogério do Redondo: “Aqui não se reserva mesa para a refeição, reserva-se para a vida”.