As dietas cetogénicas são mesmo úteis no tratamento do cancro?
A opção de iniciar uma dieta cetogénica numa pessoa com cancro está longe de ser descabida e de ser uma moda sem sentido.
Uma pessoa a quem foi diagnosticado um cancro vê a sua vida desabar de um momento para o outro e fica capaz de experimentar qualquer alternativa que lhe permita ter maior qualidade de vida ou probabilidade de sobrevivência. Por isso, as fake news e opiniões fundamentalistas sobre alimentação que dominam as redes sociais hoje em dia deveriam ter pelo menos uma réstia de consciência e decência, que é a de não brincar com coisas demasiado sérias, como o papel da alimentação no tratamento do cancro.
Do ponto de vista da prevenção, existe um relativo consenso quanto às orientações nutricionais e alimentares a ter nestes casos (manutenção de peso e gordura visceral adequados, presença diária de alimentos como frutos vermelhos, brócolos, couve-flor, frutos gordos, sementes, leguminosas, cereais integrais e restrição de bebidas alcoólicas, fritos, enchidos, carnes processadas e partes carbonizadas de alimentos grelhados/torrados para além do tabaco). Neste artigo, vamos falar sobre a alimentação após o diagnóstico de cancro e o seu efeito no sucesso do tratamento.
Uma das terapias alimentares propostas nestes casos são as dietas cetogénicas. Tratam-se de dietas com uma quantidade muito reduzida de hidratos de carbono que poderiam ser úteis, partindo da premissa de que as células tumorais utilizam principalmente glicose como fonte energia dado a falta de mitocôndrias funcionais e algumas enzimas necessárias para a oxidação de gordura. Com uma dieta cetogénica, conseguir-se-ia então limitar esta disponibilidade de glicose para as células tumorais, ficando os tecidos saudáveis a sobreviver à custa de corpos cetónicos (“combustível” alternativo produzido no fígado quando a quantidade de hidratos de carbono da alimentação é muito reduzida).
Esta teoria faz sentido na prática?
Começando pelo mais importante, a evidência disponível em humanos sobre o sucesso desta dieta no tratamento do cancro em humanos não é conclusiva nem permite dizer aos sete ventos a obscenidade de que é um tratamento com garantia do que quer que seja, alimentando com isso falsas esperanças. A partir deste ponto prévio, há várias considerações e ensinamentos que se podem tirar de alguns estudos de caso e trabalhos em animais, que podem, no limite, apelidar de “promissora” esta abordagem. Em modelos animais, a evidência disponível revela que a dieta cetogénica e também a restrição calórica (mais até do que o jejum intermitente) podem reduzir a incidência e crescimento tumoral e também o número de metástases.
O máximo que se pode afirmar em humanos é que em alguns tipos de cancro, particularmente os cerebrais (até porque estes são aqueles mais dependentes de glicose como fonte de energia e onde a teoria atrás descrita mais se encaixa), uma dieta cetogénica pode potenciar o resultado dos tratamentos de rádio e quimioterapia. É por isso importante realçar que o potencial efeito positivo das dietas cetogénicas na diminuição da progressão e crescimento tumoral não quer dizer de forma alguma que o tratamento deva ser abandonado! O racional para a utilização das dietas cetogénicas em pacientes com cancro é mesmo o de aumentar o stress oxidativo nas células cancerígenas, tornando-as mais vulneráveis a terapias oxidativas, como a rádio e quimioterapia.
Por isso, os sobreviventes a um cancro que adoptaram um regime alimentar “alternativo”, mas também fizeram os tratamentos convencionais de químio e radioterapia, fariam um excelente serviço público se não viessem atribuir o seu sucesso única e exclusivamente à alimentação. É que, por cada caso de sucesso destes, existem muitos outros que também sobreviveram sem mudanças tão drásticas na alimentação. Vai uma diferença abissal entre dizer que a dieta cetogénica pode ser uma abordagem nutricional promissora no tratamento do cancro ou dizer no típico tom “facebookiano” que a dieta cetogénica é uma “cura natural para o cancro melhor do que os tratamentos convencionais” e que esta é uma verdade inconveniente que está a ser escondida há muitos anos pelos “grandes interesses”.
A restrição calórica também parece ter alguns resultados promissores no que diz respeito à redução de algumas vias que podem potenciar o crescimento tumoral, bem como a inflamação. Ainda assim, tendo em conta o elevado risco de caquexia (perda de massa muscular e massa gorda) de alguns pacientes com cancro, este tipo de abordagem pode piorar o seu estado nutricional, daí que outra hipótese para mimetizar os efeitos desta restrição calórica sem impacto no peso corporal será consumir uma quantidade de calorias adequada, mas englobando alguns períodos de jejum. De realçar que dieta cetogénica, restrição calórica e jejum são tudo entidades diferentes, embora se possam interligar.
É possível estar em cetose sem estar em restrição calórica e sem grandes períodos de jejum, como é possível fazer jejum sem cetose e sem restrição calórica. De igual modo, uma restrição calórica não tem de ser cetogénica nem com períodos de jejum. Uma vez que quer a dieta cetogénica quer o jejum intermitente possuem vários protocolos possíveis e os poucos estudos disponíveis sobre o assunto utilizaram diferentes abordagens, é sem dúvida necessária mais investigação para se poder definir qual o protocolo que poderá originar resultados mais efectivos.
A conclusão a retirar de toda esta informação é que a opção de iniciar uma dieta cetogénica numa pessoa com cancro está longe de ser descabida e de ser uma moda sem sentido. É uma abordagem que tem de ser ponderada tendo em conta o estado nutricional e também psicológico do indivíduo, uma vez que é uma dieta que provoca um forte abalo na alimentação “social” e na nossa tradição de comer, sobretudo para uma pessoa que pode sentir que cada refeição que faz pode ser das últimas (basta imaginar o que é deixar de comer diariamente fruta, pão, arroz, batata, leguminosas e até leite e iogurtes).
Para além disso, alguns efeitos secundários das dietas cetogénicas são a ocorrência de náuseas e alguma falta de apetite, o que até pode ser desejável se o objectivo for emagrecer, mas não tanto em pacientes com cancro, uma vez que os próprios tratamentos já podem induzir esses sintomas. Ainda assim, se depois de pesados, os prós lhe parecerem melhores do que os contras e se as expectativas estiverem controladas, então que avance para uma dieta cetogénica com uma ligeira restrição calórica ou nessa impossibilidade, alguns períodos de jejum. O controlo da mesma por um nutricionista é fundamental para que consiga fazer a suplementação nutricional necessária nestes casos e consiga ter igualmente um consumo proteico suficiente para evitar o catabolismo muscular, mas não demasiado elevado para não correr o risco de interromper a cetose.