Haddad, o intelectual que vem para substituir o sindicalista Lula
Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, foi o escolhido para substituir o antigo Presidente brasileiro, caso este não se possa candidatar. E também para refundar o PT, em profunda crise com os processos de corrupção que o atingiram em cheio.
Fernando Haddad é agora um candidato temporário a vice-presidente do Brasil, porta-voz de Lula da Silva na campanha eleitoral e o candidato presidencial do Partido dos Trabalhadores (PT) em stand-by. Tudo isto ao mesmo tempo. Esta sua posição decorre da situação no mínimo peculiar em que se encontra o PT. Se alguns dizem que o antigo prefeito servirá apenas como marioneta do ex-Presidente, outros apontam para uma mudança na actuação do partido tendo em conta o seu perfil.
O símbolo maior do PT, Lula da Silva, está preso em Curitiba. É também ele o candidato presidencial preferido do partido e é quem lidera as sondagens para as eleições de Outubro. O partido mantém, pelo menos para o exterior, a confiança de que o antigo Presidente poderá ir a eleições. Mas é claro para todos que esse é um cenário altamente improvável.
A solução encontrada pelo PT foi uma espécie de “chapa tripla” em que estão todos na sombra uns dos outros: Lula mantém-se como candidato, Haddad, que foi também o coordenador do programa eleitoral “petista”, é neste momento o candidato a vice e, depois do acordo alcançado com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Manuela D’Ávila abdicou da sua candidatura. Quando se confirmar a inelegibilidade de Lula, Haddad salta para cabeça de lista e D’Ávila completará a dupla.
O nome de Haddad já vinha sendo avançado há meses como hipótese para a substituição de Lula, que se encontra preso em Curitiba a cumprir uma pena de 12 anos e um mês de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro num dos processos que tem contra si no âmbito da Operação Lava-Jato. O longo caminho político que já percorreu e a proximidade de Haddad do antigo Presidente foram tidos em conta nesta escolha. Aliás, foi o próprio Lula quem sugeriu ao partido que o escolhesse para seu porta-voz na campanha.
Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, Gleisi Hoffmann, senadora e presidente do PT, rejeitou um “plano B” para as eleições com a escolha de Haddad e revela o que lhe disse Lula, em jeito de brincadeira, numa recente visita à prisão: “Avise lá que o candidato sou eu, viu? O Haddad está em estágio probatório.”
Muitas vezes a brincar se dizem as verdades. E a realidade é que os próximos tempos serão mesmo um “estágio probatório” para Haddad. Será a oportunidade de se dar a conhecer ao eleitorado brasileiro e de provar ao partido que é capaz de liderar a refundação de que o PT tanto precisa, depois do terramoto provocado pelos megaprocessos de corrupção e pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Caminho político
A militância política de Haddad, agora com 55 anos, começou nos tempos em que estudava na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Num período em que a ditadura militar tremia, o paulista começou a mergulhar nas teorias de Karl Marx. Aí começou a formar o perfil de grande carga intelectual e reflexão que ainda hoje o caracteriza.
Depois da licenciatura em Direito, Haddad fez um mestrado em Economia e um doutoramento em Filosofia, completando assim a sua formação académica.
Com 34 anos, em 1997, inicia a sua carreira académica, tendo sido contratado como professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo, já depois de ter desempenhado funções de analista de investimentos no Unibanco.
Mas foi em 2001 que iniciou o seu trajecto político com o PT, assumindo a função de chefe de gabinete da Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Económico na prefeitura de São Paulo, então chefiada por Marta Suplicy.
Em 2003 chegou a Brasília para integrar o Ministério do Planeamento do Governo federal para, mais tarde, se tornar secretário do Ministério da Educação. Foi Lula da Silva quem, em 2005, o nomeou para assumir a pasta da Educação.
Filho de libaneses que emigraram para o Brasil, Haddad assume como grande influência o avô, Cury Habib Haddad, que morreu dois anos antes do seu nascimento. Cury Habib ganhou fama na luta no Líbano contra o domínio francês, após a I Guerra Mundial. Tornou-se sacerdote da Igreja Ortodoxa depois de ficar viúvo e acabou por morrer no Brasil em 1961. Segundo relata o jornal Estado de São Paulo, Fernando Haddad anda sempre com uma fotografia do avô na carteira. “Se olhar para ele, vai ser influenciado. Na minha família, o meu avô é hors concours. Manda em toda a gente, mesmo tendo morrido há 50 anos. Os seus valores éticos, culturais, políticos são referências”, explicava.
Todo este percurso valeu-lhe a confiança do PT, partido ao qual está filiado desde 1983, e que o escolheu como candidato à prefeitura de São Paulo nas eleições de 2012.
A sua campanha, realizada no pico do processo conhecido como “mensalão” que afectou os “petistas”, assentou fundamentalmente em ambiciosos projectos relativos à mobilidade e urbanismo da cidade São Paulo. Acabou por ganhar ao candidato do PSDB, José Serra, na segunda volta das eleições.
As questões da mobilidade, do urbanismo e também da educação acabaram por marcar a sua governação municipal. Porém, a prometida revolução urbana e social da cidade ficou a meio caminho durante os quatro anos em que liderou a prefeitura – pelo meio enfrentou os protestos de 2013, que começaram em São Paulo, contra o aumento do preço dos transportes. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, Haddad cumpriu metade das promessas que fez na campanha.
A popularidade de Haddad no seio do eleitorado paulista teve os seus altos e baixos. Em 2015, uma sondagem da Datafolha mostrava que 44% dos paulistas avaliavam a sua administração como má ou péssima, 33% como regular e 20% diziam que era boa ou óptima. Em 2016, o “petista” teve um resultado decepcionante nas eleições desse ano, perdendo a prefeitura logo na primeira volta para João Doria, que se candidatou pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Intelectual vs activista
Se se confirmar que Lula da Silva fica impedido de se candidatar – o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) toma uma decisão entre 15 de Agosto e 17 de Setembro –, Haddad terá uma árdua tarefa nas eleições, já que fundamentalmente é conhecido em São Paulo.
Porém, as últimas eleições não correram bem a Haddad no círculo eleitoral paulista, que é o maior do Brasil (representa 22,4% da totalidade do eleitorado). Nesta região, o antigo prefeito vai contar com a forte concorrência de Geraldo Alckmin (com quem até tem uma boa relação), do PSDB, o governador do estado que deixou o cargo para se candidatar à presidência. É o candidato que consegue reunir apoio do maior número de partidos.
Desta forma, Haddad terá de utilizar o tempo de campanha para se dar a conhecer ao resto do país e convencer os eleitores que votariam em Lula, e que permitem ao antigo Presidente permanecer em primeiro lugar nas sondagens, a manter o seu voto no PT.
Ainda que a sua função, num primeiro momento, seja levar ao país a voz de Lula, que considera “o maior líder político do país”, se tiver de lutar por um lugar na corrida ao Planalto, Haddad terá de mostrar ao que vem.
Apesar da sua proximidade do ex-Presidente, aspecto que irá certamente destacar e que joga a seu favor no seio do eleitorado fiel a Lula, a postura política de Haddad é bem diferente.
Intelectual, pensador e académico, Haddad colocaria o PT mais próximo de uma esquerda europeia, afastando-o da esquerda tradicional brasileira, que tem à cabeça Lula da Silva, baseada na luta activa e no sindicalismo.
Como diz Juan Arias, escritor e correspondente do El País no Rio de Janeiro, “com Haddad passa-se do PT do grito ao da reflexão”.
“Haddad não poderia ser mais diferente de Lula, seja no seu carácter e peculiaridades quanto na sua biografia. Enquanto Lula se forjou no sindicalismo, que condicionaria fortemente o partido dele nascido, virando um líder carismático e popular sem outra formação senão a da vida, Haddad é um académico, com vários diplomas, doutor em Filosofia, especialista em marxismo e com uma visão mais europeia do que tropical da política.”
Pensador do marxismo, Haddad situou-se desde cedo como crítico do estalinismo e do trotskismo, publicando alguns livros sobre o tema, como O Sistema Soviético e a Sua Decadência, de 1992.
Presença assídua em palestras, Haddad é relutante em se considerar marxista. Em Maio, numa conferência em São Paulo sobre o bicentenário do nascimento de Marx, o ex-prefeito dizia que “há marxista que defende a social-democracia nas origens do PSDB, há no PT, no PSol (Partido Socialismo e Liberdade), PCO (Partido da Causa Operária), PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado)”, como relata o Huffington Post Brasil. “Não há nenhuma disciplina que não tenha sofrido impacto das ideias marxistas.”
“Porque é que esse autor [Marx] continua importante? Há muita coisa que se aproveita dele até hoje. Ele fez uma leitura das crises. Em todas as crises lembram-se dele. O sistema de crise no capitalismo é permanente, no entendimento dele. Não há acção do governo que seja capaz de equilibrar e superar as enormes contradições da dinâmica do próprio sistema”, afirmava ainda Haddad.
Paulo César Nascimento, professor na Universidade de Brasília, explica também ao El País Brasil que “Haddad tem uma penetração em certos sectores muito maior do que Lula”. “Ele é um intelectual, menos truculento, sem ‘rabo preso’. Melhora a imagem do PT.”
A imagem de Haddad tem-se mantido relativamente limpa, numa classe política minada pela corrupção – um trunfo significativo, tendo em conta os enormes escândalos dos últimos anos. Isto, apesar de não ter escapado aos efeitos colaterais da Lava-Jato e de, em Maio deste ano, a Justiça eleitoral o ter formalmente acusado de utilizar um “saco azul” (no Brasil conhecido como “caixa 2”) para a campanha de 2012 em São Paulo. Já em Julho, o Ministério Público Eleitoral pediu o pagamento de 2,6 milhões de reais por reparação de danos para encerrar o processo. A assessoria do “petista” considerou a acusação “um absurdo”.