Lula está preso: “Já não sou um ser humano. Sou uma ideia”
O ex-Presidente brasileiro declarou que já não é um ser humano, mas “uma ideia” que não pode ser aprisionada. Nova fase envolve ampliação da contestação nas ruas.
Entre choros, agradecimentos, música e rezas, Lula da Silva aceitou entregar-se à polícia para começar a cumprir a pena pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas aceitou fazê-lo nos seus termos, sem abandonar a luta política e lançando as sementes para um movimento que já entrou no território do culto da personalidade.
Foram precisas mais de duas horas de negociações entre os líderes partidários e sindicais e os grupos de apoiantes que impediam Lula de se entregar, mostrando que as ruas não digeriram bem a decisão.
“Não sou mais um ser humano, sou uma ideia”, declarou o ex-Presidente brasileiro perante as milhares de pessoas que passaram a manhã de sábado nas imediações da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, o local que marcou o nascimento da vida política de Lula. Com esta frase, dita já na fase final do discurso de quase uma hora, Lula lançou as bases para a próxima fase do combate. Os seus apoiantes choravam e pediam-lhe que resistisse. Dali, só podia sair sobre os braços da multidão. E assim foi.
Agora que a prisão é uma realidade, é tempo para uma “transferência de responsabilidade”, como definiu o ex-Presidente, dirigindo-se as seus apoiantes. É a eles que cabe, a partir de agora, levar a luta para as ruas. “Todos vocês vão virar Lula. Eles têm que saber que a morte de um combatente não pára a revolução”, afirmou. Pouco depois de discursar, ouviam-se já entre a multidão as palavras de ordem que prometem encher as ruas nos próximos tempos: “Eu sou Lula.”
O destino do ex-Presidente tinha ficado selado na quinta-feira quando o juiz responsável pelas investigações da Operação Lava-Jato, Sergio Moro, emitiu uma ordem de prisão para Lula da Silva, algumas horas depois de o Supremo Tribunal Federal ter recusado um pedido de habeas corpus apresentado pela defesa.
Antes de discursar, Lula viu ainda recusado pelo juiz do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, um pedido de suspensão da prisão apresentado na véspera. Moro tinha dado um prazo de 24 horas para que o ex-Presidente se entregasse à Polícia Federal em Curitiba, mas Lula pediu mais tempo.
A intenção era ampliar a carga dramática do momento da entrega. A escolha do Sindicato dos Metalúrgicos é altamente simbólica – Lula foi preso há 38 anos, durante a Ditadura Militar, por causa das greves que liderou a partir daquele local. Foi igualmente marcada uma missa ao ar livre em memória da mulher de Lula, Marisa Letícia, que morreu no ano passado e faria 68 anos este sábado.
Entre uma homilia com uma forte componente política, música conotada com a resistência à Ditadura Militar, e palavras de ordem que apontavam no sentido da resistência, Lula passou os seus últimos momentos em liberdade ao lado de vários dirigentes sindicais, membros do Partido dos Trabalhadores e de outras formações de esquerda, ex-ministros e a Presidente destituída, Dilma Rousseff.
A “tesão” da Veja
Aos seus apoiantes, Lula voltou a negar as acusações de corrupção, utilizando argumentos que tem repetido sempre que se pronuncia. Em Janeiro, o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre confirmou em segunda instância a condenação do ex-Presidente pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro e ampliou a sua pena para 12 anos e um mês de prisão. O Ministério Público diz que a construtora OAS pagou as obras de remodelação de um apartamento de luxo que pertence a Lula na praia de Guarujá, perto de Santos, em troca de favorecimento na concessão de contratos públicos.
Lula negou desde o início as acusações, dizendo que o apartamento nem sequer lhe pertence. “Sou o único ser humano que está a ser processado por um apartamento que não era meu”, disse. O caso movido contra si faz parte, segundo a sua tese, partilhada pelo PT e pela esquerda brasileira, de um plano mais vasto para afastar os “petistas” do poder, no qual se inclui a destituição de Dilma Rousseff. “Se for por esses crime, de colocar pobres na universidade e a comer carne e a viajar de avião, se esse foi o crime, então eu vou continuar a ser criminoso neste país porque vou fazer muito mais”, garantiu Lula.
A imprensa, que Lula diz ser parcial e trabalhar ao serviço dos interesses da elite, também voltou a ser muito visada. “Eu imagino a tesão da [revista] Veja ao ver a minha fotografia preso. Eles vão ter orgasmos múltiplos”, ironizou.
Entre a ordem de Moro e o momento da prisão, a defesa de Lula esteve a negociar os termos da detenção. Segundo a BBC Brasil, o ex-Presidente queria ser detido em São Paulo, e não em Curitiba, e exigiu não ser algemado ou que a detenção fosse mostrada publicamente. Lula fez também questão de assistir à missa de homenagem à mulher e, segundo a Folha de São Paulo, queria ser preso apenas no domingo à noite, após o jogo entre o Palmeiras e o Corinthians, equipa que apoia.
Uma saída difícil
Depois do discurso, Lula almoçou com a família e deveria ter-se dirigido em seguida para o aeroporto de Congonhas já sob custódia policial. Porém, os manifestantes concentrados à porta da sede do sindicato impediram a saída do carro da polícia em que ele se encontrava, obrigando-o a regressar uma vez ao edifício. Lula acabou por ter de sair pelo próprio pé até entrar numa viatura da polícia. Daí partiu num jacto da Polícia Federal para Curitiba, onde muitos apoiantes já se concentravam, para passar a sua primeira noite de detenção numa sala no edifício da Superintendência.
O PT insiste que Lula será o candidato às eleições presidenciais, embora a condenação em segunda instância inviabilize a sua candidatura a um cargo público ao abrigo da lei da Ficha Limpa. De momento, a prioridade dos “petistas” é levar a contestação para os centros nevrálgicos onde se jogam os próximos capítulos da Lava-Jato – Curitiba, onde Lula está detido, e Brasília, sede dos principais tribunais.
Os próximos passos da defesa devem passar pela apresentação de um novo pedido de habeas corpus junto do Supremo Tribunal Federal. Há ainda a possibilidade de que duas acções que contestam o entendimento do STF de permitir a prisão de condenados em segunda instância – ao abrigo do qual Lula foi preso – poderem vir a ser apreciadas pelos juízes. Porém, diz o El País, a presidente do STF, Cármen Lúcia, tem afastado o acolhimento das duas acções, uma vez que este entendimento vigora apenas desde 2016.