Adiamento do debate de tomada de posse abre guerra entre soberanistas
Dirigentes tentam dar imagem de união, mas divisões e irritações ficaram claras em dia de muitos nervos. Mais um em que milhares de catalães saíram à rua à espera de festejar o que nunca aconteceu.
Há episódios que exemplificam os nervos e as divergências em que por estes dias vivem os dirigentes independentistas catalães. Roger Torrent, presidente do parlamento autonómico, telefonou quatro vezes a Carles Puigdemont antes da conferência de imprensa em que anunciou o adiamento da sessão de investidura do próximo líder catalão. Queria informá-lo, ele não atendeu – dizem membros da sua coligação, Juntos pela Catalunha, porque Torrent ligou de um número não identificado.
Outro reflecte os nervos em que a insistência de Puigdemont em liderar a Generalitat deixou o Governo espanhol. Estava Mariano Rajoy na TVE a avisar Torrent para ter “noção do que não pode fazer”, sabendo “que terá de responder se não cumprir decisões dos tribunais” e os porta-vozes do seu Governo davam conferências de imprensa a congratular-se com o anúncio do dirigente catalão, que assim “cumpre o que o Tribunal Constitucional definiu” na sua polémica resolução de sábado.
No parlamento da Catalunha, os ânimos estiveram exaltados, primeiro dentro do edifício, depois fora, horas depois de os manifestantes convocados pela Associação Nacional Catalã em defesa de Puigdemont terem conseguido furar os cordões policiais e aproximar-se do edifício. Os dirigentes da Juntos pela Catalunha, de Puigdemont, mostraram a sua irritação com Torrent por não terem sido informados da sua decisão, dizendo-se “prontos para o debate” e chegando a ameaçar entrar no hemiciclo à hora marcada.
Os quatro deputados da CUP (Candidatura de Unidade Popular) levaram a ameaça até ao fim e ocuparam os seus lugares com punhos erguidos. “Para haver independência, vai haver pressões, vai haver exílios, a independência por magia não existe, é difícil”, afirmava, visivelmente irritado, o deputado Vidal Aragonés.
Os líderes da Juntos pela Catalunha explicaram os motivos para desistirem do protesto simbólico. “Avaliámos a opção, reunidos, isto vai obrigar a muito jogo de cintura e a mudar a agenda. Mas não havia razão de fundo”, afirmou o porta-voz Eduard Pujol, tentando desviar as atenções da discordância que muitos companheiros deixaram clara. “Que não sofram os que querem ver fissuras ou desacordos. O compromisso é irrefutável”, insistiu Pujol. As garantias necessárias “cumprem-se hoje e é hoje que temos a maioria de 68 votos”, dissera, por seu turno, Elsa Artadi, presidente do grupo parlamentar.
Naturalmente, a ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), mostrou-se de acordo com a decisão de Torrent, membro do partido, considerando-a “inteligente, honesta e valente”. O que o presidente do parlamento fez foi ganhar tempo sem entrar em desobediência à Justiça, garantindo assim que não há mais gente acusada antes sequer de se formar um governo saído das eleições de 21 de Dezembro, que renovaram a maioria independentista.
O Tribunal Constitucional definira que Puigdemont pode tomar posse desde que o faça presencialmente e depois de pedir autorização ao juiz Pablo Llarena, que tem a instrução do processo contra o ex-executivo por “rebelião, sedição e desvio de fundos”, mais o caso de “sedição” contra os dois Jordis (ex-líderes das principais associações soberanistas).
Atacando o “Governo e o Constitucional”, que pretendem “violar os direitos de milhões de catalães e catalãs”, Torrent afirmou que nunca irá propor “outro candidato que não seja Puigdemont”. E respondendo à carta que este lhe enviara de Bruxelas, pedindo-lhe garantias, disse irá “até ao fim para defender os direitos de Puigdemont, as instituições e os eleitores; que são a essência da democracia, porque a democracia não se suspende”.
Uma expressão que não terá sido escolhida por acaso. Afinal, Torrent adiou o debate de tomada de posse sem o suspender, pelo que muitos interpretam que se limitou a cumprir o ditado pelo Constitucional, que deu dez dias para alegações contra a sua decisão. Assim, estará assegurado que Rajoy não vai considerar que o prazo para um primeiro debate termina dia 31 de Janeiro à meia-noite, o que iniciaria a contagem para novas eleições.
O próprio Puigdemont divulgou pelas 20h uma mensagem gravada, lamentando o adiamento. "Há exactamente três meses que uma parte do Governo da Catalunha se instalou no exílio", afirmou. "Não há nenhum outro candidato bem combinação aritmética possível", insistiu (ver vídeo).
Puigdemont, que obviamente não pretendia estar em Barcelona e no hemiciclo à hora prevista, tem entretanto quase pronto o discurso de investidura. A chefe de gabinete da secretaria-geral da ERC, Marta Rovira (líder desde a detenção, no início de Novembro, de Oriol Junqueras, ex-vice de Puigdemont), já recebeu um rascunho desse discurso.
Delegar o discurso
A intenção da Juntos pela Catalunha é que Puigdemont possa delegar o discurso, invocando o artigo 83 do regulamento do parlamento, onde se define que “comunicando-o previamente ao presidente, e para um debate ou trâmite concreto, qualquer deputado com direito a falar pode ser substituído por outra pessoa do seu mesmo grupo”. Este artigo não terá sido escrito a pensar num discurso de investidura, mas os aliados de Puigdemont acreditam que podem levar a sua avante desde que a ERC concorde (os dois partidos tem maioria na Mesa do parlamento).
O dia ficou marcado por cenas de filme, como a revista por parte da polícia à mala do táxi em que o líder dos “comuns” (Podemos e plataforma da autarca de Barcelona, Ada Colau) chegou ao parlamento. Nas ruas, a maior associação soberanista, a ANC, clamava que “a vontade popular não se desconvoca” e “a soberania não pode ser modificada por um tribunal”.
Menos exaltados, os dirigentes da outra grande organização de luta pela independência, a Òmnium, insistiam que só o parlamento saído das urnas tem legitimidade para escolher os representantes das instituições catalãs, avisando para os riscos de uma batalha interna no campo soberanista. “Querem-nos divididos mas não podemos cair nessa armadilha. Os grandes consensos são o melhor caminho para tornar possível o mandato democrático”.
Entretanto, as centenas de pessoas que durante a tarde se concentraram nas imediações do parlamento transformaram-se em milhares. Vários deputados do PP e do Cidadãos, os dois partidos da direita não independentista, queixaram-se de insultos e de terem tido de abandonar a assembleia “sob escolta”.