Legislatura catalã ou quando a lei não contempla os factos
É cada vez mais difícil dar opiniões sobre a actualidade catalã, mesmo quando em causa está algo que poderia parecer simples: leis, a sua interpretação e cumprimento.
A lei “não contempla todos os pressupostos que agora se estão a colocar na Catalunha”, diz Francesc Pau, que até à semana passada era advogado do parlamento catalão e ensina Direito Constitucional na Universidade Pompeu Fabra. Depois de Roger Torrent, presidente do parlamento autonómico, ter adiado sem suspender a sessão de tomada de posse “deixou de haver calendário, estamos num vazio legal”, num “beco sem saída”, defende o especialista, ouvido pelo diário catalão La Vanguardia.
Para perceber como chegámos aqui é preciso alguma revisão: a 30 de Outubro, na sequência da declaração de independência feita dias antes por Carles Puigdemont no parlamento (e do referendo de 1 de Outubro), entrou em vigor o artigo 155 da Constituição, que permitiu a Mariano Rajoy dissolver as instituições catalãs e assumir a governação, marcando de imediato eleições antecipadas para 21 de Dezembro.
Ora, depois de contados os votos, cabia a Rajoy marcar a sessão inaugural, que aconteceu a 17 de Janeiro (tinha de se realizar até dia 23). Reunido o parlamento, sem Puigdemont (que no dia 30 de Outubro já acordou em Bruxelas), alguns eleitos que estão com ele na Bélgica e os deputados detidos (Oriol Junqueras, líder da ERC, e Jordi Sànchez, “número dois” da lista do ex-president e antigo líder da maior associação independentista, a ANC), foi eleito presidente da assembleia o deputado republicano Roger Torrent.
Este fez o que dita a lei, ouvindo os grupos parlamentares, nomeando para investidura o candidato com mais apoios – Puigdemont – e marcando uma data para essa sessão. A nomeação foi publicada no Boletim Oficial do Parlamento a 23 de Janeiro; a sessão ficou marcada para 30 de Janeiro (penúltimo dia possível, já que a lei diz que o primeiro debate de posse tem de acontecer até dez dias úteis depois do início da legislatura (17 de Janeiro).
Entretanto, o Tribunal Constitucional (TC) reuniu-se no sábado para debater um recurso do Governo de Rajoy contra a nomeação de Puigdemont, que não admitiu a trâmite. Apesar disso, definiu medidas cautelares para a posse do dirigente catalão (tem de estar presente e pedir antes ao juiz que tem a instrução do caso contra o seu antigo executivo), o que extravasa as suas competências. Os juízes também abriram um prazo de dez dias para receberem alegações e decidirem sobre o recurso.
“Falta a base jurídica e se o árbitro muda as regras do jogo não há partida possível”, disse, também ao La Vanguardia, o especialista em Direito Constitucional Marcel Mateu. Outros defendem que o prazo para o debate se esgota à meia-noite de dia 31, pelo que o relógio começa a contar para novas eleições e quem manda é ainda Rajoy. A maioria parece ter opinião contrária: “A partir do momento em que o TC dá um prazo para alegações, o tempo não pode correr”, interpretam advogados do parlamento, citados pelo jornal El Periódico.
De acordo com o jornal El Mundo, os grupos soberanistas e os socialistas catalães acreditam que com o adiamento do plenário se entrou numa espécie de “tempo morto indefinido”. Mesmo porque se o TC deu prazo para alegações, Torrent não poderia nomear outro candidato antes do seu fim. Assim, o relógio só recomeçará na primeira votação de investidura.
O próprio regulamento da Mesa do parlamento (a que Torrent preside) parece oferecer uma solução temporária, ao prever no seu artigo 94 que é possível “chegar a acordo para prorrogar prazos” e que “excepto em casos excepcionais, esses adiamentos não podem exceder um espaço de tempo igual ao fixado”. Ou seja, os mesmos dez dias úteis previstos recomeçariam a contar agora. Claro que, como escreve o diário catalão El Periódico, “supõe-se que a inédita eleição de um ‘presidente’ em fuga da Justiça se considere um desses ‘casos excepcionais’”.