Terrorismo: Governo não quer, mas o gabinete da Interpol continua na PJ
Primeiro-ministro decidiu há oito meses retirar à PJ gabinetes da Europol e Interpol, mas a lei impediu-o. Inspectores e procuradores dizem que políticos vão ter acesso a informação em segredo de justiça.
A Polícia Judiciária (PJ) continua ser o canal privilegiado através do qual a Europol e a Interpol partilham as informações sigilosas e criminais com Portugal. Isto apesar de o Conselho Superior de Segurança Interna, presidido pelo primeiro-ministro, António Costa, ter decidido há oito meses retirar estes contactos à PJ, transferindo-os para a alçada da secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, Helena Fazenda. A decisão foi tomada no contexto da estratégia de combate ao terrorismo para melhorar a cooperação entre as polícias, mas colide com a legislação em vigor.
Actualmente, a PJ recebe os dados e partilha-os se necessário com as outras polícias nacionais. Na reunião do conselho, os representantes da PSP, GNR e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras defenderam então que esta alteração pode ajudar a evitar falhas na partilha de informação como as que terão ocorrido na Europa, antes dos atentados de Paris e Bruxelas, em 2015.
Porém, só uma mudança nas leis o permitirá. A Lei Orgânica da PJ refere especificamente que compete a esta polícia, através da sua Unidade de Cooperação Internacional, assegurar o “funcionamento dos gabinetes da Interpol e da Europol para os efeitos da sua própria missão e para partilha da informação”. Aliás, só a PJ pode investigar crimes de terrorismo através da Unidade Nacional Contra-Terrorismo. A Lei de Segurança Interna também terá de ser mudada para que a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, cargo que passou a ser conhecido como o “super-polícia”, passe a ter as competências da PJ quanto às informações da Europol e Interpol.
Estes serviços policiais, um europeu e outro mundial, reúnem informação criminal para que as polícias de cada país trabalhem integradas no combate ao crime internacional.
Questionada pelo PÚBLICO, a procuradora Helena Fazenda remeteu esclarecimentos para o “gabinete do primeiro-ministro”, que não deu muitas informações. “Neste momento, só é possível dizer que o processo [para alterar a legislação] está em curso; está para ser finalizado, nada mais havendo a comentar”, respondeu o gabinete de António Costa.
Mal-estar entre polícias
Mas não serão apenas os formalismos legais que estarão a travar a mudança pretendida pelo Governo. Fontes ligadas ao processo explicaram que a decisão está a criar mal-estar entre as diferentes polícias — PJ, GNR e PSP. Através da criação do Ponto Único de Contacto, sob a égide de Helena Fazenda, a PSP e a GNR passam a ter acesso a toda a informação, apesar de não terem competência para investigar crimes de terrorismo.
Os inspectores da PJ temem ainda que o Governo passe a ter acesso a informação em segredo de justiça. “Há esse perigo. A secretária-geral do Sistema de Segurança Interna é equiparada a secretária de Estado e responde perante o primeiro-ministro”, diz Ricardo Valadas, presidente da Associação Sindical dos Funcionários da Investigação Criminal (ASFIC), que representa os inspectores.
“Isso viola o princípio da separação de poderes. O poder executivo passará a ter acesso a informação que só pode ser gerida pelo poder judicial. Este modelo pode ser o início de um Estado securitário”, avisa Ricardo Valadas. Aos inspectores juntam-se os procuradores. Logo após a decisão, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) disse estar “muito preocupado” com o “acesso de um titular de um cargo político a matéria relevantes em segredo de justiça”.
José Manuel Anes, ex-presidente e membro consultivo do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), deixa ainda outro alerta. “Os outros países só nos transmitem informação porque sabem que é tratada pela PJ. Se esses países perceberem que o poder político pode passar a aceder aos dados, podemos passar a deixar de a receber”, alerta. A ASFIC já se reuniu com a ministra da Justiça, os representantes dos partidos e espera encontrar-se com o Presidente da República para travar este processo.
Esta decisão foi anunciada pouco tempo depois de o anterior governo ter aprovado a estratégia nacional antiterrorismo. Um mês após o primeiro atentado de 2015 em Paris, ao jornal satírico Charlie Hebdo, em Portugal passou a ser crime fazer a apologia do terrorismo na Internet, viajar ou tentar viajar para cenários de conflito para dar ou receber treino ou participar em atentados.
Mas “não basta alterar as leis. Faltam meios ao Ministério Público e aos tribunais”, diz o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas. Também em Julho, a Unidade de Coordenação Antiterrorismo, que reúne elementos das secretas e polícias, passou a funcionar no Sistema de Segurança Interna em permanência.