A democracia turca num jogo de avanços e recuos
Quando tudo parecia perdido, os cidadãos enfrentaram os tanques e salvaram o regime democrático. A questão é como é que os políticos se vão comportar agora.
Erdogan vs Gülen
Se há uma tentativa de golpe de Estado na Turquia, com militares a bombardear o Parlamento, quem é o que o Presidente Recep Erdogan vai culpar? Fetullah Gülen claro, o inimigo para todo o serviço.
Erdogan pediu aos EUA para extraditarem o imã Gülen, instalado na Pensilvânia desde 1999 e inspirador de um movimento político e social que o Presidente turco designa “um Estado paralelo” e acusa, já há anos, de orquestrar um golpe de Estado para o derrubar. Mas não com militares. Aliás, se o movimento de Gülen é popular em muitos sectores da sociedade – como os magistrados, por exemplo – não o é entre os militares.
Gülen, que já foi um aliado próximo de Erdogan, condenou por seu lado “nos termos mais fortes” a tentativa de golpe, numa declaração colocada no site do seu grupo nos EUA, Alliance for Shared Values, que se apresenta como uma organização sem fins lucrativos. Na Turquia, o grupo designa-se Hizmet (serviço), e é conhecido pela sua rede de escolas, que se alargaram também a outros países. Não ensinam religião, mas sim os currículos normais ocidentais, mas encorajam o islão nos dormitórios, com os professores a dar o exemplo pelo estilo de vida e orações, escreveu o New York Times.
Seguem um islão sunita inclusivo, mas sempre suscitaram desconfiança dos militares turcos, defensores da herança secular de Kemal Ataturk, o pai fundador da Turquia, que os consideravam um cavalo de Tróia para uma islamização mais profunda da sociedade. Tinham, aliás, a mesma desconfiança em relação a Erdogan. Isso fez de Gülen e Erdogan aliados, inicialmente.
Mas os velhos aliados acabaram por se zangar – provavelmente, tudo começou por uma disputa entre o sistema judicial, pró- Gülen, e o AKP, o partido de Erdogan. Em resultado disso, Erdogan ameaçou fechar as escolas do Hizmet. A partir daí, começou a investigação por corrupção contra vários membros do Governo e próximos de Erdogan, que abalou o Estado turco, e começou a guerra declarada entre os dois.
Num comício em Istambul ao fim do dia neste sábado, o Presidente Erdogan acusou “forças estrangeiras” de quererem pôr o exército contra o povo.
Partidos e Estado de direito
Encontrar um assunto que una os partidos turcos é quase tão impossível como fazer a quadratura do círculo, mas as quatro principais forças políticas fizeram uma declaração comum, lida no Parlamento bombardeado, a condenar o golpe.
“Condenamos a tentativa de golpe contra a nossa nação, a vontade nacional, o Estado, os eleitos e o Parlamento enquanto seu reflexo, e os ataques contra o próprio Parlamento”, diz a declaração, citada pelo jornal Hürriyet, lida pelo presidente da Assembleia, Ismail Kahraman.
Esta unidade será suficiente para aprovar uma medida com tanto impacto como o regresso da pena de morte – algo sugerido pelo primeiro-ministro Binali Yildirim, para punir os cabecilhas do golpe. “Vamos discutir esta e outras medidas com os líderes políticos e outras medidas a tomar para prevenir futuras tentativas de golpe”, disse Yildirim, sem avançar mais pormenores sobre a reunião deste sábado.
Isso não é impossível num clima pós-golpe, em que os analistas prevêem que possa resultar, de forma paradoxal, num reforço dos poderes do Presidente – que quer mudar a Constituição para transformar a Turquia num regime presidencialista.
Kemal Kilicdaroglu, o líder do principal partido da oposição, o secularista Partido Popular Republicano (CHP), que tradicionalmente está ligado aos militares, afastou-se dos golpistas. “Este país já sofreu muito com golpes de Estado. Não queremos que se repitam essas dificuldades”, afirmou Kilicdaroglu.
Devlet Bahçeli, líder do Partido do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), de extrema-direita, telefonou ao primeiro-ministro para expressar o seu apoio à democracia e à vontade do povo.
À esquerda, os líderes do Partido Democrático do Povo (HDP), que defende os interesses da minoria curda, e que o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) do Presidente Erdogan hostiliza abertamente, defenderam também a legitimidade do Governo.
O golpe de Estado falhado deita abaixo resistências políticas a Erdogan – de tal forma que uma das teorias conspirativas que mais circula nas redes sociais é que tudo não passou de um imenso teatro, organizado pelo próprio Presidente, para derrubar as últimas barreiras ao seu domínio do país. Os ajustes de contas parecem inevitáveis – após o golpe, foram já presos dois juízes do Tribunal Constitucional, uma instituição que o Presidente ameaçou dissolver nos últimos meses, quando os magistrados consideraram inconstitucional a prisão de dois jornalistas. Isto além dos 2745 juízes despedidos – apesar de o golpe ter sido militar, são suspeitos de pertencer ao movimento de Fetullah Gülen.
Afinal, Erdogan, tem uma relação bastante elástica com a democracia, como revela uma das suas muitas citações famosas: “A democracia é como um eléctrico: apanhamo-la até chegarmos ao nosso destino, e quando chegamos, saímos.”
Militares e EUA
Erdogan disse que o golpe foi “uma oportunidade dada por Deus” para “limpar” as Forças Armadas. Mais de 3000 militares foram presos, incluindo generais de topo – as palavras do Presidente turco não parecem ser apenas ameaças. E, no entanto, nos últimos tempos, a influência dos militares, que o Presidente conservador islâmico, próximo da corrente da Irmandade Muçulmana, tinha conseguido vergar, voltou a impor-se, por exemplo com o recrudescimento da campanha militar no Curdistão e o abandono da trégua e negociações de paz iniciadas há anos pelo Governo de Erdogan.
O exército, que se considera como o guardião da nação secularista iniciada pelo general Kemal Ataturk, após a I Guerra Mundial, nunca morreu de amores por Recep Erdogan, um ex-imã que chegou a ser condenado a uma pena de prisão por ler em público um poema que reflectia a sua fé. Mas a conquista e manutenção do poder pelo partido islamoconservador de Erdogan mudou muito a Turquia. Há toda uma classe social, que subiu com Erdogan, a dos pequenos empresários, comerciantes, uma burguesia mais recente, e que lhe é fiel, que saiu à rua para o defender – juntamente com outros turcos, que não são necessariamente apoiantes do Presidente, mas também não querem o regresso ao tempo dos golpes militares.
Os militares têm também agindo como um travão para o envio de tropas turcas para a Síria e, até agora, têm-se mantido afastado da polícia. “O exército é o único agente que tenta criar um sistema de separação de poderes contra Erdogan”, disse ao Wall Street Journal Metin Gurcan, um ex-militar que agora é analista de segurança em Istambul.
Mas a restauração da influência dos militares deu novo gás aos rumores de que poderia haver um novo golpe de Estado em preparação – algo de que os turcos estão sempre à espera, pois têm uma vasta experiência, com os quatro sofridos durante o século passado. No ano passado, a especulação atingiu um ponto de frenesi, com o boato de que a Administração norte-americana estaria a patrocinar uma tentativa para substituir Erdogan.
A Turquia tem o segundo maior exército da NATO, e está numa posição geográfica fulcral – entre a Europa e o Médio Oriente, a fazer fronteira com a Síria – para a gestão de alguns dos conflitos mais tormentosos da actualidade. Hostilizá-la abertamente não é uma opção, e a diplomacia turca tem usado muitas vezes as suas cartas num jogo que se aproxima perigosamente da chantagem.
Após o golpe, a base de Incirlik, no Sul do país, usada pelos Estados Unidos como ponto de partida para os drones e aviões que atacam o Estado Islâmico na Síria e no Iraque permaneceu encerrada, sem electricidade, sem que os norte-americanos pudessem aceder a ela. O Pentágono viu-se obrigado a suspender as campanhas aéreas na guerra da Síria.
O motivo oficial para este corte de acesso é a suspeita de que aviões usados pelos militares revoltosos se reabasteceram nesta base, e que o caso está a ser investigado.