“Golpe de Estado civil” muda a Turquia
Erdogan controla todos os poderes e os seus adeptos sonham com a restauração da glória otomana.
O caso turco convida a um raciocínio elementar: aconteceu o que tinha de acontecer. Ou seja, 14 anos após a conquista do poder nas eleições de Novembro de 2002, o Presidente Recep Tayyip Erdogan e o seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) arrancam a máscara democrática e dão razões às teses conspirativas da “agenda escondida” para islamizar o país. Para outros, será mais uma prova da incompatibilidade entre islão e democracia. O problema é que pelo meio fica uma década de reformas democráticas e aproximação à Europa.
Os analistas políticos abordam a deriva turca por outro ângulo, a do poder: “Imperador Erdogan”, “Rei Erdogan” ou “Sultão Erdogan” são títulos correntes no contexto do apelo ao “homem forte”, a combinação de nacionalismo e autoritarismo em voga da Ásia à Europa. Outros ainda repetem a pergunta habitual dos orientalistas: “What went wrong in Turkey?” (“Que correu mal na Turquia?”)
Esta mudança tem uma história. Não estava escrita de antemão. O analista americano Graham E. Fuller publicou um estudo sobre a Turquia e as primaveras árabes (Turkey and Arab Spring: Leadership in the Middle East, 2014) em que, antes de dissecar a deriva autoritária de Erdogan, fazia o balanço dos primeiros anos de poder do AKP.
“Até 2011, terá sido o melhor Governo da Turquia desde a adopção da democracia nos anos 1950. Os sucessos de Erdogan podem ser medidos em termos de uma profunda democratização, de um espantoso crescimento económico e de prosperidade, (...) de um exemplar afastamento dos militares da política, da elaboração de uma visionária política externa (com uma nova ênfase na independência perante as falhadas políticas americanas no Médio Oriente), de uma moderna formulação do que um governo de orientação islâmica pode significar numa ordem democrática.” A Turquia era vista como um modelo para o mundo muçulmano. Entretanto muito mudou e a questão que Fuller hoje levanta é outra: “Pode a Turquia sobreviver a Erdogan?”
O “golpe civil”
Maio de 2016 ficará conhecido como sendo o do “primeiro golpe de Estado civil” da História turca, fértil em golpes militares, escreve um editorialista. Na noite de 4 de Maio, depois de um encontro com o Presidente Erdogan, o primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, anunciou que abandonava a liderança do Partido da Justiça e Desenvolvimento e, consequentemente, a chefia do Governo. Demitiu-se no dia seguinte. Segundo a Constituição, apenas o Parlamento o podia derrubar. Erdogan não hesitou em o fazer, enterrando o regime parlamentarista e antecipando um presidencialismo que ainda não foi aprovado. Dizem os constitucionalistas turcos que o problema não é o presidencialismo mas o facto de ser “um presidencialismo sem contrapoderes”, em que o Presidente controla os outros poderes: o legislativo, o executivo, o judicial — e o mediático.
No dia 20, o Parlamento turco aprovou uma alteração à Constituição que retira a imunidade parlamentar aos deputados investigados pela Justiça. O AKP tem a maioria absoluta mas não a maioria de dois terços necessária para rever a Constituição. No entanto, a medida foi aprovada por 376 dos 550 deputados, isto é, mais de dois terços, porque teve o apoio do Movimento de Acção Nacionalista (MHP, direita nacionalista), virulentamente anticurdo.
Os principais visados são os deputados curdos do Partido Democrático dos Povos (HDP): 50 dos seus 59 deputados estão acusados de cumplicidade com o terrorismo. Outros, sobretudo do Partido Republicano do Povo (CHP, esquerda laica), são acusados de “insultos ao Presidente”.
Logo que Erdogan promulgue o texto, poderão começar a ser presos. Ao retirar aos curdos a sua representação política, Erdogan faz o jogo da ala radical do PKK, que regressou à luta armada, o que, por sua vez, justifica as medidas de excepção.
Começou em 2011
A partir de 2011 e da esmagadora vitória eleitoral do AKP, com quase 50% dos votos, Erdogan assume o projecto de ser Presidente e mudar o regime. É o primeiro acto da mudança do regime, explica o analista Tharan Erdem.
Pela mesma altura surgem as primeiras contestações sérias ao seu Governo e denúncias de corrupção dentro do AKP. O ano de 2011 é também o da eclosão das “primaveras árabes” que vão destroçar a política externa turca. Erdogan vai enganar-se em todas as opções e acabará num quase total isolamento.
É também em 2011 que o poderoso movimento Hizmet, do líder religioso sufi Fetullah Gülen (exilado nos EUA), começou a criticar algumas das políticas de Erdogan, no plano interno e no internacional, acusando-o de ser “crescentemente autocrático”. Gülen teve um papel decisivo na reconversão ideológica do AKP no fim dos anos 1990 e foi seu aliado durante anos. Para lá da sua influência em sectores como a educação, a magistratura ou a polícia, dispunha de uma larga rede na comunicação social. É uma voz rival de Erdogan na interpretação dos valores islâmicos, do pluralismo político à defesa de uma educação secular.
Em Maio de 2013, estala a contestação no Parque Gezi de Istambul. Para Erdogan, não era um movimento social mas uma conspiração inspirada por potências estrangeiras.
O grande confronto estala em Dezembro de 2013. O procurador de Justiça de Istambul — suspeito de pertencer ao Hizmet — ordena dezenas de detenções por corrupção, atingindo personalidades do AKP e provocando a demissão de três ministros. A seguir são postos em causa os negócios dos filhos de Erdogan. Este acusa Gülen de tentar dar um “golpe de Estado” e de controlar um “Estado paralelo”. Reage com extrema brutalidade. A Justiça é colocada sob tutela, milhares de polícias e magistrados são saneados, é cerceada a liberdade de informação. É uma guerra que ainda não acabou.
Em Agosto de 2014, Erdogan é eleito Presidente, na primeira volta e com 51,2% dos votos. É o segundo acto da mudança. Numa rápida manobra, antecipa-se ao AKP propondo para seu líder e chefe do Governo Ahmet Davutoglu, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Trata-se de barrar o caminho ao co-fundador do partido, o ex-Presidente Abdullah Gül, representante da ala mais democrática e europeísta do AKP.
Além de Gül, figuras como o antigo ministro da Economia Ali Babacan ou Bülent Arinç (antigo vice-primeiro-ministro) são marginalizadas no partido, onde ascendem os fiéis de Erdogan. Chega agora a vez de Davutoglu, que resistiria a algumas das suas ideias, a começar pelo presidencialismo. Foi o terceiro e derradeiro acto.
Erdogan não venceu apenas por ter sido o mais hábil actor numa implacável luta pelo poder. Há outra coisa, escreve o analista Mustafa Akyol: “O povo”, que praticamente significa “a maioria”, opta por vezes por um regime autoritário. “Especialmente quando o ‘povo’ se sente sitiado e ameaçado. Quer um governo de mão-de-ferro que esmague ‘os inimigos’ de dentro e de fora.”
Acrescenta o analista Cengiz Çandar que o núcleo duro do eleitorado islamista tem um sonho: “A restauração da glória otomana na pessoa de Erdogan.”