De Alcoutim a Mértola, há um deserto a crescer nas margens do Guadiana

As políticas de combate à erosão do solo levaram à plantação de 37 mil hectares de pinhal no nordeste algarvio. A conclusão a que agora se chega é que há árvores a mais e pessoas a menos

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“O Guadiana tem de ser encarado como um canal de desenvolvimento, não como uma barreira” Enric Vives-Rubio

O despovoamento do interior está em colocar em causa o futuro do Algarve enquanto região que não tem só sol e praias. “Despovoamento e desertificação [do solo] são duas faces da mesma moeda”, concluiu Maria de Belém Freitas, professor da Universidade do Algarve (Ualg), num debate realizado no Parque Natural da Ria Formosa, no Dia Mundial do Combate à Desertificação, na passada sexta-feira.

O encontro serviu para fazer um esboço do balanço sobre o resultado dos milhões que foram investidos para inverter o plano inclinado das políticas que litoralizaram o território. Mas no nordeste algarvio, por esse rio acima só os turistas é que dão sinais de vida nova.

O antigo director-geral do Desenvolvimento Rural, Miguel Freitas, um dos oradores do encontro, moderado por Maria de Belém Freitas, diz que o que se passa no nordeste algarvio espelha o que se tem feito no país em termos de aplicação dos fundos comunitários nos últimos anos: “50% dos dinheiros do Proder [Plano de Desenvolvimento Rural] foram aplicados em medidas de combate contra os incêndios”.

Porém, o problema, no entender deste técnico – actualmente professor da Ualg –, reside na necessidade de existir uma “política integrada que promova o desenvolvimento e atraia pessoas”. E dá um exemplo: “O Guadiana tem de ser encarado como um canal de desenvolvimento, não como uma barreira”, sublinhou. Os investimentos públicos foram canalizados, em grande medida, para as agro-florestais nas margens do rio sem olhar para o potencial da estrada fluvial. Nesta altura, disse, “em Alcoutim, há apenas dois pescadores com licença”.

A coordenadora do projecto da Via Algarviana, Anabela Santos, por seu lado, destacou a grande rota terrestre que une Alcoutim ao Cabo de São Vicente, em Sagres, como exemplo positivo do desenvolvimento do interior. Em termos financeiros, disse, “o retorno do investimento no projecto, no valor de 1,5 milhões de euros, foi ultrapassado”.
Miguel Freitas concorda com a aplicação dos dinheiros públicos nas questões ambientais, mas preconiza uma nova configuração nos investimentos. Do ponto de vista da conservação da natureza, o antigo deputado do Partido Socialista defende como “prioridade absoluta a conservação do solo, que se encontra depauperado”, combatendo-se assim a desertificação física. Dá o exemplo do empobrecimento de terras na zona do Alqueva, argumentando que a incorporação de 1% de matéria orgânica no solo nesta zona, segundo um estudo de Mário de Carvalho, da Universidade de Évora, “iria reter [no terreno] tanta água quanto aquela que existe na barragem”.

No nordeste algarvio foram plantados 37 mil hectares de pinheiro manso com o objectivo de evitar a erosão do solo (844 árvores por hectare), mas estão por avaliar os resultados ambientais. Para que este pinhal ser produtivo, diz Miguel Freitas, têm de ser cortadas metade das plantas. Mas e o que fazer à lenha? A resposta a esta questão vai ser objecto de estudo de curso de mestrado da Ualg sobre gestão do espaço rural coordenado por Maria de Belém Freitas. A apresentação está marcada para o próximo dia 22, em Alcoutim. 

Com menos de três mil habitantes, o concelho discute o futuro que deve trilhar, colocando questões semelhantes a outros municípios do interior. Do ponto de vista político, Miguel Freitas diz que há “sensibilidade” da parte de quem decide, mas o Programa de Desenvolvimento Regional (PDR2020) não traduz os discursos em acções: “Existe muita sensibilidade, mas ainda não há uma prioridade definida”, enfatizou. Por isso, lançou um desafio ao ministro do Ambiente para que, com os 160 milhões do Fundo Ambiental, “não esqueça que não há defesa do ambiente sem pessoas no território”

No que diz respeito às Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as queixas vão no mesmo sentido: os objectivos do PDR 2020 têm de ser clarificados. “A aplicação está muito atrasada e as dúvidas são muitas”, queixou-se Pedro de Jesus, da ZIF do Barranco do Velho – a entidade que coordenou a recuperação do solo da serra do Caldeirão após o incêndio de 2012, quando arderam 24 mil hectares. O estado de depressão que se instalou na população serrana é que está longe de ser ultrapassado.

O papel que deve ter o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) na relação com as comunidades está longe de ser consensual. “O que me dizem as pessoas é que o ICNF só proíbe, nada mais do que isso”, diz Anabela Santos. A experiência que tem tido nas relações com o Parque Natural da Ria Formosa, disse, não a leva a subscrever tal crítica. 

A empresária de turismo rural Maria Conceição, da Quinta do Freixo, criticou os aspectos burocráticos. “Quando se pede uma licença, a resposta chega já quando as questões estão ultrapassadas”. Um dos exemplos apontados foi a autorização para a caça ao javali, uma espécie que está a invadir os campos serranos algarvios. “Qualquer dia, acordo com um javali ao lado”, disse, referindo-se à proliferação de animais na zona de Benafim e Alte.

Falta de objectivos ou critérios, burocracias, projectos errados ou simples desleixo em relação ao interior são ingredientes que levam a que a batalha contra a desertificação e o despovoamento continue a ser perdida, milhões de euros de fundos comunitários depois. 

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