A acossada
De um lirismo seco e desprendido, quase alheado, isento de melodrama, O Astrágalo é um romance melancólico sobre a paradoxal inadaptação da protagonista à liberdade.
No entusiástico e apaixonado prefácio de O Astrágalo, Patti Smith conta como tropeçou em 1968, numa livraria de Greenwich Village, Nova Iorque, neste pequeno romance de Albertine Sarrazin (1937-1967), escritora francesa nascida na Argélia, que o marketing editorial (já) então proclamava como sendo “um Genet no feminino”. E recorda como durante décadas levou consigo para toda a parte uma edição de bolso da obra, como se fosse um talismã. A autora de Horses procurava “um livro que fosse mais do que um livro” e encontrou O Astrágalo: “Minha Albertine, como eu a adorava! Os seus olhos luminosos conduziram-me através da escuridão da minha juventude. Ela foi a minha guia através das noites de cem sonos.” Num ensaio célebre, Sartre “santificou” o autor de Diário de um Ladrão, chamando-lhe “comediante e mártir”. Patti Smith replica a canonização, chamando à sua Albertine “pequena santa dos escritores inconformistas”. Sarrazin — que, antes de se revelar como escritora, se dedicou à pequena criminalidade e à prostituição — não terá sido menos “comediante” do que Genet, ao exibir a sua marginalidade com orgulhoso e combativo despudor e transformando-a na matéria do seu triunfo literário; nem foi menor “mártir”: passou quase metade da sua vida em reformatórios e prisões, e morreu antes de completar 30 anos de idade, por causa de uma cirurgia negligente. Porém, e estando Genet tão arredado hoje das glórias do dia, será melhor suspendermos as comparações.
O Astrágalo é a história de uma fuga malograda. Ao saltar o muro da prisão, Anne, a protagonista de 19 anos, parte o osso do pé que dá o título ao livro e fica praticamente incapaz de se mover. É ajudada por um pequeno marginal de bom coração, chamado Julien, que a acolhe em casa de sua mãe. Suceder-se-ão, ao longo de um pouco mais de um ano, outros refúgios de circunstância, em Paris e na província, em arrabaldes de “pequenos jardins anémicos” e “sem verdura fútil”. E Anne, que é bissexual, acabará por se apaixonar por Julien, seu cúmplice existencial: “Todas as nossas conversas estão cheias de esperança e de nada, não há lugar para nós na terra: só a errância ou a prisão, sempre e sempre sozinhos” (p. 80). Mas Julien, que tem os seus próprios problemas com a lei e a ordem vigentes, ausenta-se com frequência, deixando a nossa heroína entregue à bondade dos estranhos com os quais tem de comerciar casuisticamente as condições da sua frustrante liberdade. Anne recorda quase com nostalgia o tempo fechado da prisão onde, “apesar de tudo, podia-se retouçar secretamente dentro dos limites seguros da rotina de cada dia”: “A minha nova liberdade aprisiona-me e paralisa-me” (p. 44). Previsivelmente, a história acabará com o regresso de Anne à prisão: “O caminho é puro e agreste como um deserto; talvez mais tarde, calmamente, abordemos as veredas mágicas…” (p. 127).
Coincidindo a narrativa, no essencial, com a experiência de vida da autora, poder-se-á dizer que O Astrágalo (primeiro romance de Sarrazin, que publicou mais dois) é um livro autobiográfico. Mas tal condição não nos diz nada sobre a maior ou menor justeza e sobre o maior ou menor interesse literários da obra. E o livro de Albertine Sarrazin, tendo sobrevivido às marcas epocais e biográficas, autonomizou-se enquanto ficção, e como tal merece ser lido. Não lhe faltam imagens eficazes e surpreendentes. Certo cinzeiro “parece aumentar de volume, destacando-se como um pecado sobre o tampo de mármore da mesa” (p. 103) e, na página seguinte, Pedro, uma personagem menor, “masturba pacientemente a rolha [de uma garrafa de champanhe], que começa a sair pouco a pouco.” E umas páginas antes, por exemplo, descrevendo o efeito de uma anestesia: “Morri com um formigueiro agradável nas têmporas, sem ter assistido à entrada de Deus” (p. 79).
De um lirismo seco e desprendido, quase alheado, isento de melodrama, O Astrágalo é um romance melancólico sobre a paradoxal inadaptação da protagonista à liberdade. Uma liberdade vigiada, essa “eternidade de amarga esperança” que é a única liberdade consentida a quem foge. “A humildade que fingíamos [na prisão] torna-se real”, lamenta a protagonista, prisioneira dessa liberdade vigiada, desde logo, pela sua condição de circunstancial “deficiente”, que lhe não deixa autonomia de movimentos (e, enquanto fugitiva, não pode recorrer aos cuidados hospitalares de que necessita); e vigiada, depois, pela sua condição de revel aos costumes e à lei (sobre a prostituição à qual recorre a determinada altura, diz Anne: “Emprego este meio porque é rápido, não exige horários nem aprendizagem — ou quase nada”); mas vigiada, sobretudo, pelas invisíveis mas mais inescapáveis grades da servidão sentimental: “[…] se me virem amanhã, quando estiver cicatrizada, curada de tudo, excepto do amor…” (p. 146).
Em vez de uma história de jubilosa fuga para a liberdade, o livro torna-se o retrato de uma personagem acossada pela “realidade, essa podridão”. E com “aquela lucidez especial que nasce do cansaço”, Anne conclui: “A minha liberdade tolhe-me os movimentos. […] Pensar, cansa!”