Uma rapariga africana em Lisboa

Djaimilia Pereira de Almeida é um nome novo na literatura portuguesa. Estreou-se com um livro que cruza memória, ensaio e ficção a partir da relação de uma rapariga com o seu cabelo crespo. A procura de uma identidade, contada com cerimónia e sentido de risco.

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Djaimilia Pereira de Almeida chegou a Lisboa com três anos, trazida pela sua família de portugueses e angolanos NUNO FERREIRA SANTOS

Estreia literária que resiste a catalogações, misto de romance, memória e ensaio, Esse Cabelo é a “história indirecta da relação entre vários continentes”, ou seja, metáfora de uma “geopolítica”. Estamos perante a biografia de um cabelo, escrita com “um lápis preso nos dentes”, imagem que Djaimilia encontrou para descrever a cerimónia com que se lançou nesta narrativa e que atravessa todo o livro. Lê-se: “Este livro é escrito num pretérito imperfeito de cortesia.” A autora explica: “Era o único tom possível para escrever em público a partir de elementos tão próximos da minha vida.” Como a protagonista de Esse Cabelo, Djaimilia chegou a Portugal vinda de Luanda com três anos, filha de uma família de portugueses e angolanos, mulata de cabelo crespo que nunca foi alinhado a não ser à custa de muitos alisamentos com produtos químicos e visitas frustradas a cabeleireiros que reflectiam a existência frágil de uma comunidade à margem e que, no conjunto, formavam uma “cartografia de inaptidão”.

A história de Mila — a protagonista —, como a de Djaimilia — a autora —, é uma “história de reparo” e de busca de identidade, contada com a tal cerimónia que marca o tom e que nasce do que Djaimilia chama de “sentido de decoro”. Um decoro que se alarga às pessoas que não a conhecem e até podem não ler o livro, mas pensado a partir das que a conhecem muito bem. “É um livro que trabalha com elementos muito próximos de mim e no qual outras pessoas se poderão reconhecer.” Não é pudor. “É fazer cerimónia, como quem não come a última fatia dourada.” A cerimónia constrange o acto de escrita, mas não impede a escrita de acontecer. “Acho que nunca há grande liberdade e quem imagina que ela existe é por pura ingenuidade. De um modo geral, escrever tem mais a ver com auto-censura ou com cerimónia.”

Doutorada em Teoria da Literatura pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Djaimilia Pereira de Almeida começou a escrever Esse Cabelo quando deixou a vida académica, mas encontra uma relação entre o livro e a tese. “Quando comecei a escrever andava interessada em álbuns de fotografias de família e no que aprendemos ao folheá-los. Queria reproduzir num livro essa experiência, mas não sabia muito bem o que fazer.” A ligação com a tese, sobre a inseparabilidade do indivíduo em relação ao que o envolve, veio do sentimento de que “a relação com o álbum é como apercebermo-nos que antes de termos começado já cá estávamos, que somos como uma espécie de deixa, de uma frase numa conversa entre estranhos familiares”. A noção de que tinha encontrado aí um princípio orientador de escrita viria já com o livro avançado: “Comecei a reconhecer-me como um destes estranhos nesta conversa”, conta. 

Tal como cada sujeito, também o livro dependia da relação entre esses vários estranhos familiares. “É a história de uma pessoa que é, como todos nós, alguma combinação. Fui percebendo que não posso decantar os elementos dessa mistura, isolá-los, e que também não posso ver-me livre deles.” A tese tinha a ver com um reconhecimento disso e com a noção de multidão em Walt Whitman. Na relação com o outro é preciso ter em conta os elementos dessa combinação  uma ideia que pode estar na frase “meu espírito é amplo, eu contenho multidões”. Djaimilia não refere o poema, mas tudo o que subjaz à poesia do norte-americano. “A rapariga acaba por se encontrar, não pondo-se no lugar dos outros mas embrenhando-se em si mesma.”

Em Esse Cabelo, essa conquista é feita tanto de solidão quanto de acaso, a partir de um trabalho com a memória. “Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso”, prossegue Mila, na espécie de solilóquio que é este livro. Sente-se estranha em dois mundos e a consciência do cabelo deu-lhe essa percepção. “Nas memórias de infância do [Tomas] Tranströmer [As Minhas Lembranças Observam-me, Sextante], ele conta que tinha um vizinho com quem se cruzava nas escadas do prédio, um homem pálido, amarelento e sombrio que o intrigava. Em casa, ouvia-o em conversas telefónicas animadas, às gargalhadas, ouvia garrafas de cerveja a serem abertas, e aquele barulho de festa era um espanto em relação à figura sombria do vizinho. É essa experiência de estranheza indiscernível do processo que determinou o livro. É como se eu, ao escrever, ouvisse as gargalhadas do vizinho. Há um sentido de aventura implicado, de não temer as gargalhadas que não posso antecipar, e de não fugir quando começarem. Esta condição de estranheza da Mila é inseparável do acto de ela começar a contar a sua história. Não é apenas a estranheza relacionada com as particularidades identitárias de uma família.”

A colagem ou confusão entre autora e protagonista é permanente num livro onde memória e ficção jogam um jogo condicionado pela pergunta “quem é quem?” ou “o que é ficção e real, exposição ou invenção?”. “Não foi premeditado. Talvez tenha começado mais por inépcia do que por outra coisa. Era-me mais natural escrever na primeira pessoa e a partir de elementos que eu conhecia, mas o que há de ficcional surgiu de, tal como Mila, eu me embrenhar cada vez mais em mim. Quanto mais falei sobre mim, mais dei comigo a falar de coisas que nunca aconteceram. A ficção não veio de uma tentativa de me pôr no lugar de outras pessoas, mas de coisas que fui aprendendo enquanto escrevia.”

Fotografia da alma 
Djaimilia Pereira de Almeida começou a pensar neste livro em 2012 e, assegura, não era nada disto que lhe surgia então. “Eu estava a ler as memórias de infância do Walter Benjamin em Berlim [Rua de Sentido Único e A Infância em Berlim por Volta de 1900, Relógio D’Água] e também um livro que analisava ao pormenor a fotografia de Elizabeth Eckford.” Fala da fotografia que regista o momento em que uma rapariga negra entrou no Liceu Central de Little Rock, no Arkansas, em 1957, e se tornou um símbolo da luta pelos direitos civis nos EUA. Esse momento foi registado em múltiplas imagens. Uma está reproduzida em Esse Cabelo e, sobre ela, Mila refere: “É a radiografia da minha alma. A minha alma é a figura impassível de Elizabeth Eckford em primeiro plano e o ódio implacável da multidão à sua passagem no plano de trás.” Foi mais um contágio entre muitos para o livro de Djaimilia, como a comunidade de raparigas que falam e escrevem sobre cabelo na Internet e que Djaimilia começou a acompanhar. 

O tópico do cabelo apareceu então com maior evidência. Mas a fotografia de Elizabeth Eckford permanecia. No livro Talking to Strangers, da filósofa norte-americana Danielle Allen, analisam-se todas as versões desse momento e descreve-se a vida da rapariga nos dias que antecederam aquela manhã. Perguntaram a Elizabeth Eckford o que tinha feito no dia anterior. “Ela respondeu que a única preocupação era saber se a mãe já tinha acabado de coser o vestido e se lhe ficava bem. Aquilo ficou na minha cabeça como qualquer coisa de poderoso.” 

Dessa percepção ficou a noção de altivez, de vaidade, do preconceito com a futilidade, elementos essenciais para a sobrevivência, seguindo a leitura de Esse Cabelo. A banalidade colada ao momento histórico. “Nunca sabemos que se vai fazer História. Estamos a viver as nossas vidas agarrados a pormenores que só por cinismo podemos dizer que são comezinhos”, sintetiza Djaimilia no mesmo tom silencioso, de cortesia, sorrindo da tal ideia de geopolítica a partir do drama capilar. Este é o meu cabelo mas não é só o meu cabelo: como escrever essa história “sem uma futilidade intolerável?” era a tal questão inicial, o desafio de ter de deixar “a literatura à porta” para fazer outra coisa. Metaliteratura? Tudo está implícito neste livro confessional, a vários ritmos, sobre a geração que ultrapassa finalmente a imagem de um cabelo crespo; que fala de bullying e dos subúrbios da capital portuguesa nas décadas de 80 e 90, de loucura e de um espelho que reflecte tudo o que não se foi. O que se vê nesse reflexo? “É difícil o acesso às pessoas que não fomos”, diz Djaimilia. Volta a Mila que imaginava o que seria ter crescido em África e nunca ter vindo para Portugal. “Só consegue imaginar isso a partir de lugares-comuns e de estereótipos a respeito do que são raparigas criadas em África. Não é por ela ser uma rapariga africana em Lisboa que consegue ter acesso a uma imagem justa do que seria a rapariga que ela não chegou a ser. O que lhe chega é esta espécie de caricatura.” 

E Djaimilia, também se sente uma rapariga africana em Lisboa? “Sim, e totalmente lisboeta, mas uma pessoa como eu é sempre uma rapariga africana em Lisboa. Não tenho propriamente uma casa aonde regressar. Mesmo que eu ensaiasse um regresso, não tenho aonde ir. Estou como muitas outras pessoas numa espécie de limbo da origem de que não nos conseguimos muito bem desenvencilhar. Não é possível ir à procura desse lugar que não corresponde a um lugar geográfico. Tentando ir em busca desse sítio, o que vou encontrar não é um lugar, mas são as minhas pessoas, os meus mortos, os meus vivos, memórias de ditos em família, uma coisa a que gosto de chamar parole doméstica. Indo à procura de uma origem, só encontro isso, e acho que isso me une à maioria dos africanos que estão em Lisboa, independentemente de eu ter crescido com a minha família portuguesa e não propriamente vivido a vida de um emigrante.”

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Nuno Ferreira Santos
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