Um filme falado

Não parece, mas esta, aqui em cima, é a imagem de um filme falado.


O trailer de Cosmopolis também é um jogo de simulacros.

Joga com o reconhecimento do espectador perante a fase do canadiano David Cronenberg que entretanto se tornou iconografia pop - e aproveita o eventual desejo do espectador que ele regresse a ela.

Introduz uma jovem vedeta e uma vedeta dos jovens, Robert Pattinson, nesse universo codificado: aproveita o potencial de novos públicos, como se David se pusesse agora a (re)distribuir jogo, mas ao mesmo tempo quer colocar ao largo o amanhecer dos vampiros e investir Pattinson de uma euforia virginal: a dos inflamados anti-heróis cronenberguianos - o “show me something that I don''t know” com que termina o trailer, por exemplo.

Jogo de simulacros, sim: afinal, mesmo se Pattinson pode evocar, assim de repente, Jude Law, cuja frigidez Cronenberg aproveitou perversamente em eXistenZ, Cosmopolis não é eXistenZ (1999), esse brinquedo que o canadiano fez com o seu universo, um gadget lúdico e viscoso que aconteceu depois da experiência-limite (no limite do cabotinismo com os actores, por exemplo) que foi o sublime Crash (1996).

Cosmopolis: nada a ver com o Cronenberg desses tempos, portanto, que era visceral, paródico, olímpico, uma aventura ofegante; tudo a ver com o Cronenberg de uma essência (re)descoberta, como ele disse: a de que o cinema é a palavra e um rosto e não o Grand Canyon.

Aplicando essa new flesh do actual estado das coisas cronenberguiano a Cosmopolis, os diálogos da obra de Don DeLillo seriam transpostos imaculadamente para o ecrã mas - tanto cuidado que Cronenberg tem mostrado em sublinhar isso, que parece uma defesa por antecipação... - não implicaria um teatro filmado visto que está ali a câmara que se movimenta, está ali a luz, e com esse aparato nasce um ser “mutante”, o filme. Cronenberg é luminoso e didáctico nas entrevistas e nas conferências de imprensa. Mas a questão é sensível, pelos vistos. Devem-lhe estar sempre a falar na “teatralidade” dos seus últimos filmes. Que não pode ser, sequer, a acusação de uma falha. Podíamos desenrolar uma lista de filmes e cineastas supostamente “teatrais” que são essencialmente cinematográficos. O problema não está na “essência”. Está na dificuldade que os filmes de Cronenberg têm revelado em chegar a esse tal corpo “mutante” e em escapar à redundância do que nos desata a falar sobre o que anteriormente nos mostrou.

De Don DeLillo diz-se que foi premonitório há dez anos, com Cosmopolis (2003): o fim do mundo (capitalista) tal como o conhecíamos. Na sua limousine-sarcófago, a caminho do barbeiro, Eric Michael Packer/Robert Pattinson, boy wonder da Alta Finança, espera o apocalipse inevitável que ameaça das ruas: o dinheiro perdeu o fio de narrativa, só se sabe narrar a si próprio; alguma coisa terá de acontecer, porque o futuro se tornou insistente e o mundo demasiado contemporâneo. O cinema de Cronenberg há algum tempo também furou a carne do futuro. Mas como se não tivesse forças para escapar à redundância, agora só se narra a si próprio, não escapando a comentar o que já sabemos e o que já sabemos dele.

Por mais excitante que seja uma entrevista ou uma palestra de Cronenberg, é difícil encontrar - e pensamos no efeito de câmara de eco de Cosmopolis - na retórica filosofante que se senta nesta limousine, nas entradas e saídas de actores para fazerem o seu “número” perante Pattinson ou nos ruminantes vinte minutos finais, em que Paul Giamatti, “character actor” de serviço, nos dá outra vez o derrotado, sejam a essência desse “essential cinema”. Serve para justicar uma zona de conforto de alguém cujo cinema já esteve numa zona de perigo. (Pattinson também não dá para mais, nem chega a ser Jude Law, esse actor frígido a quem Cronenberg trocou as voltas para acentuar a viscosidade.)

O cinema de Cronenberg precisa que algo lhe aconteça. Cosmopolis é o filme sobre a actual CRISE e o filme da sua actual crise.

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