Paul Verhoeven: estávamos a precisar deste Herói Indie
A mostra dedicada ao realizador de Instinto Fatal e Showgirls inclui curtas-metragens, exclui apenas o trabalho para televisão. Abrirá com Robocop. O IndieLisboa decorre de 20 de Abril a 1 de Maio.
É verdade: o vulgar, o reaccionário Paul Verhoeven chegou, em Novembro de 2015, à capa dos Cahiers du Cinéma, depois de os seus filmes terem sido desprezados por aquelas páginas cinéfilas. Os adjectivos iniciais, vulgar e reaccionário, são pedidos de empréstimo aos próprios Cahiers, que em Novembro assumiram que, com poucas excepções – como o elogio a Black Book (2006) –, nunca perceberam a ironia da obra de Verhoeven, despachando os filmes como carnavalescos. “Vulgares, violentos, reaccionários”. Novembro de 2015 foi então o mês do mea culpa: entrevistaram o cineasta holandês que em Paris terminava a produção do seu último filme, Elle, com Isabelle Huppert. Verhoeven, 77 anos, descrito como homem afável, ter-se-á prestado ao jogo sem amargura ou cinismo, permitindo que uma conversa de cinema fosse posta em dia.
Não estamos aqui para falar dos Cahiers, estamos aqui para falar do IndieLisboa, que de 20 de Abril a 1 de Maio vai homenagear Paul Verhoeven como Herói Indie. Mas estamos a constatar que é possível que o apetite que os Cahiers descobriram pela obra do holandês – “como sentimos a falta do seu cinema”, exclamam no editorial – esteja a falar de uma fome mais geral, de uma saudade, que se comunica. A virulência do cinema de Verhoeven, o seu prazer e a sua vitalidade e sensualidade, mas também a ironia, desfaçatez, estão não só há muito arredados do mainstream como fazem hoje figura de sufocantes interditos. E o melhor que (nos) pode acontecer nesta revisão ou descoberta do cinema do realizador – a mostra é praticamente integral, inclui curtas-metragens, exclui apenas o trabalho para televisão (e excluirá Elle, que tem estreia mundial marcada para Cannes duas semanas depois do Indie) – é deixarmo-nos abalroar pelas máquinas de energia que são as personagens dos filmes, sobretudo as femininas, quer tenham o rosto e o corpo de Sharon Stone, Elizabeth Berkley ou Carice van Houten – vamos ver o que Verhoeven faz com Isabelle Huppert, que há semanas em Paris se assumia rendida com a experiência e ainda não refeita do milagre. E vamos (re)descobrir a iconoclastia e a liberdade, a graça de um rosto e de um corpo masculino antes do momento da iconização: Rutger Hauer, nos tempos de Delícias Turcas (1973) e de O Soldado da Rainha (1977), antes de Blade Runner.
A homenagem no Indie, retrospectiva feita em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, terá a abrir Robocop (1987), o filme que fez Verhoeven atravessar o Atlântico rumo ao centro da indústria americana, onde foi um artesão de uma máquina, Hollywood, permitindo-se, como é uma tradição daquela fábrica, subvertê-la por dentro. (Uma das coisas interessantes na entrevista aos Cahiers, por exemplo, é que nunca reclama o estatuto de “autor”). Entre sucessos (Instinto Fatal, 1992) e falhanços (Showgirls, 1995, premiado com o Golden Raspberry Awards, o Razzie, para o pior filme e pior realizador, ou o fabuloso Starship Troopers, 1997, que deixou os estúdios incrédulos perante o que deles se tinha escapado: era fascista ou era uma sátira travestida de Leni Riefenstahl sobre o fascínio americano pelo fascismo?), a obra de Verhoeven joga as regras do espectáculo até à desagregação, assumindo-as até uma espécie de agonia final. Mas, simultaneamente, mantém-se numa zona indecifrável.
Numa obra que lhe dedica (Paul Verhoeven, Faber and Faber), Rob van Scheers parte de uma espécie de cena reveladora, a entrega dos prémios dos piores filmes do ano de 1996, no Blossom Room do Roosevelt Hotel, em Los Angeles. Showgirls estava nomeado para 11 Razzies, depois de ter sido atacado de todos os lados (Nudity Sells, Showgirls smells, foi um dos títulos na imprensa da altura). Verhoeven, num gesto inédito, apareceu para recolher o que lhe caberia, e foram sete. "Estou muito contente por ter recebido estes prémios, porque isso significa que sou aceite aqui e que faço parte deste grande sociedade americana." Para Rob van Scheers, referindo-se a esta fluida e desestabilizadora fronteira entre o sarcamo e a sinceridade, isto podia ser uma cena de um filme do "Sultão do Choque" (chamou-lhe a Time), uma daquelas em que a crítica ao espectáculo americano vai de par com vestir o espectacular hábito da sociedade americana - como se o cineasta Verhoeven, para quem "contar é mostrar", quisesse ser mais americano do que os americanos.
Que nos seja permitido concluir que depois das excessivamente confortáveis escolhas dos Heróis Indie 2015 – Mia Hansen-Løve e Whit Stillman, escolhas auto-celebratórias, porque era da liturgia indie que se tratava –, Paul Verhoeven em 2016 é uma sacudidela que fazia falta ao IndieLisboa. Logo, a todos nós.
Paul Verhoeven é esperado na cidade.