O sonho americano da ourivesaria portuguesa
O sector que cresceu 500% em plena recessão ganha novo fôlego às mãos de jovens autores que reinterpretam as tradições e dá a Milla Jovovich o papel de promover a joalharia portuguesa no mundo. Lisboa vai ter em Abril de 2017 a primeira feira dedicada à ourivesaria e joalharia.
Da janela, qualquer vizinho vê o que se passa nas oficinas descaracterizadas da Leitão & Irmão. Não há cortinas nem vidros espelhados a esconder as bancadas onde os artesãos trabalham delicados fios de ouro com gestos cirúrgicos. Conversa-se pouco. São precisas muitas horas, às vezes meses, para se verem nascer jóias ou apenas elementos que, de tão discretos, nem se lhes dá o devido valor, como um fecho para uma medalha, feito a pedido, que já conta vários dias de trabalho e ainda não está acabado. Leva o tempo que precisar. E faz-se com gosto, nota-se-lhes no mexer, no olhar sereno, na mestria. “Imagina alguém, todos os dias, oito horas sentado a olhar para uma peça?” Olhar é forma de dizer, mas é preciso gostar muito para se repetir os gestos incansavelmente e fazer bem. “Não é para todos”, garante Jorge Leitão, a quinta geração de proprietários da casa dos antigos joalheiros da coroa portuguesa, a Leitão & Irmão. Fátima Neto, 50 anos, aqui chegada vinda da Escola Secundária Artística António Arroio para aprender, há quase três décadas, hoje a chefiar a oficina do ouro, tem esse gosto desde o dia em que se encantou por um par de brincos e desistiu da ideia de ser jornalista. Escreve a ouro todos os dias com o mesmo empenho em cada peça que lhe passa pelas mãos.
Umas ruas abaixo, no mesmo Chiado apinhado de turistas, antes da curva do eléctrico 28, na Rua António Maria Cardoso, o designer Valentim Quaresma ultima a colecção que vai desfilar na 25.ª edição da ModaLisboa. Há pincéis, tintas, alicates de pontas, tesouras. Elena Larren, 36 anos, professora de Técnicas de Joalharia da Escuela de Arte y Superior de Palencia Mariano Timón, veio para aprender com ele. Tinha-o conhecido no ano passado e voltaram a cruzar-se numa conferência na sua escola, interessou-se pelo processo criativo, pela capacidade de construir grandes volumes. “É um arquitecto da joalharia. É admirável vê-lo trabalhar e é muito generoso, escuta, discute, aceita opiniões, é um grande capitão de equipa.” Valentim Quaresma ajudou-a a pensar em grande, a não ter medo dos novos materiais, a experimentar, experimentar, experimentar...
No atelier, por estes dias, anda-se à volta de acrílicos, metal, couro, denim, neoprene, microfibras. A sua colecção Ruptura para a Primavera/Verão 2017 é sobre “a liberdade de movimento e pensamento, a ruptura das ideias pré-concebidas de criação de moda e o processo criativo académico, o desejo da experimentação e a mistura de todas as áreas criativas”. Tão diferente do processo criativo e de produção de cada peça na centenária Casa Leitão.
Não há um desenho para reproduzir, está tudo na cabeça do criador de 46 anos. É preciso escutar-lhe as ideias para se entrar no seu universo caótico mas ordenado, em que sabe qual o ponto de partida de uma peça. O resultado não são jóias-acessórios, peças-vestuário, são esculturas, instalações, arte.
Valentim Quaresma trabalhou com Ana Salazar, a pioneira da moda portuguesa, durante quase duas décadas, e venceu, em 2008, o prémio Accessories Collection of the Year, na competição internacional ITS#7, em Trieste, Itália, quando lançou a marca própria. Não são as tradicionais jóias das montras das ourivesarias, vendem-se em galerias de arte e integram exposições. “É esse o lugar da joalharia contemporânea, porque contém uma mensagem, um código cultural”, ressalva Elena.
Foi nesse contexto que chegou ao videoclip G.U.Y. da provocadora Lady Gaga, em 2014. E, ainda que a vocalista da banda Amor Electro, Marisa Liz, faça aumentar as vendas por usar as suas peças no programa Ídolos, da RTP, 70% do volume de negócios resulta de clientes estrangeiros, entre a Europa e o Brasil. De tal forma este mercado se tem revelado apreciador do trabalho de Valentim Quaresma que, no próximo dia 27, vai abrir a sua primeira loja fora de Portugal, numa das principais artérias comerciais de Curitiba, a capital do estado do Paraná, próxima do shopping que reúne marcas internacionais de topo, como Louis Vuitton, Prada, Valentino ou Dolce & Gabanna. “É o primeiro passo da internacionalização antes de avançar para outros pontos de venda no Brasil, que vão depender dos resultados. Curitiba é um mercado cosmopolita e serve como balão de ensaio para as marcas. Para já, há um grande entusiasmo com a colecção de homem, que em Portugal não tem expressão. Mas um passo de cada vez.”
O coração de Milla é português
Como Valentim Quaresma, o sector da joalharia tem apostado na internacionalização. Faz por isso com as marcas a mostrarem-se em feiras dos Estados Unidos à Ásia. Mas figuras públicas como Sharon Stone e Julia Roberts deram o seu contributo indirectamente, ao terem sido fotografadas com peças portuguesas – a primeira usando um coração de Viana nas ruas de Beverly Hills, que lhe tinha sido oferecido pelo patrão da Douro Azul, Mário Ferreira, na sua passagem pelo Douro; a segunda, fotografada com uma pulseira da designer Luísas Rosas para a revista americana InStyle. Os famosos vendem e a Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal (AORP) escolheu a modelo e actriz Milla Jovovich para protagonista da campanha que vai promover a joalharia nacional nos quatro cantos do mundo, numa estratégia de incentivo à exportação de forma a alcançar a meta de 150 milhões de euros em cinco anos. “Tivemos alguns nomes portugueses na mesa, mas queríamos atingir um posicionamento transversal, cativar o mercado americano e isso é mais fácil com uma estrela de Hollywood”, justifica Fátima Santos, secretária-geral da AORP. A campanha foi rodada no Porto, em Junho, com a produção a cargo de uma equipa nacional e durante um ano faz da actriz a porta-estandarte de um sector cujo volume de negócios é de 1000 milhões de euros.
Os resultados alcançados, entre 2008 e 2014, com as vendas para o exterior a registarem um crescimento de 500%, traduz-se em optimismo entre os intervenientes, bastou uma mudança de atitude. “O sector estava totalmente vocacionado para o mercado interno e, quando sentimos a crise de forma muito severa, as empresas só tiveram uma saída, a exportação”, diz Fátima Santos. Para isso, foi preciso um esforço e um endividamento ainda maior de estruturas, muitas de cariz familiar, onde até aqui apenas havia espaço para rotinas.
A mudança para reagir às alterações de consumo não foi fácil. “Cometeram-se muitos erros, a maioria das empresas não estava preparada e continua a não estar. Houve as que se reestruturaram e outras que surgiram mais adequadas aos novos tempos, com estruturas leves e uma nova forma de comunicar.” À boleia de incentivos, como o Portugal 2020 [o ciclo de programação dos fundos europeus entre 2014 e 2020, que substitui o antigo QREN], pequenas empresas como a Eleutério, de Travassos, Póvoa do Lanhoso, cuja tradição familiar na filigrana remonta a 1925, renovaram a imagem, métodos de produção, estratégias comerciais.
Para 2016 e 2017 a AORP conta com um orçamento de cerca de 2 milhões de euros para apoiar a internacionalização. As feiras são uma das montras para o negócio. Nos últimos meses a associação levou 17 empresas a Paris, dez a Madrid, cinco a Hong Kong. Em França, um dos mercados-alvo do sector pela proximidade, as vendas subiram 24%.
Entre os 430 associados que reúne, muitos são jovens designers a arriscar a sorte. Para a promoção destes novos talentos criou a plataforma Portuguese Jewellery Newborn, uma das novidades da Bijorhca, em Paris – esta feira é um dos principais eventos que reúne compradores de todo o mundo, duas vezes por ano. Cecília Ribeiro, 29 anos, levou as suas peças pela primeira vez à capital francesa e ficou satisfeita com os contactos e as vendas. A forma como trabalha as texturas chamou a atenção de bloggers, que são hoje os grandes influencers e opinion makers, e que ajudaram na divulgação do seu nome. A viver e trabalhar em Barcelona, onde foi fazer formação na área, depois dos estudos em Design Industrial, tornou-se mais assertiva na abordagem, expandiu horizontes por estar fora da zona de conforto e tornou-se mais atenta às oportunidades.
Cada designer tenta marcar a diferença, seja pelas técnicas que usa – Tânia Nunes, da Minha Jóia Atelier, em Vila do Conde, por exemplo, recria a renda de bilros em fios de prata –, seja pelo legado que transporta para as peças — a Mater Jewellery Tales, uma startup incubada na ANJE – Associação Nacional de Jovens Empresários, foi buscar inspiração ao Porto de Leixões e à calçada portuguesa. Sara Coutinho, a directora criativa da Mater, sabe que, na Bijorhca, “eram os menos desconhecidos entre os jovens designers” devido à cobertura que tiveram na imprensa estrangeira quando, há um ano, estiveram no Portugal Fashion, outra das plataformas da ANJE. Esta geração sabe que as redes sociais e a presença nos meios de comunicação são fundamentais para se afirmarem. A Allis Jewellery não esteve em Paris, porque ainda é tudo muito recente, a empresa lisboeta só arrancou em Janeiro, mas, em busca de visibilidade, já empresta as suas jóias a uma pivot dos noticiários da TVI e a duas personagens da telenovela Amor Maior, da SIC. O trabalho de autor assume um papel principal na mudança, ainda que revisite as tradições.
Laboratórios de artistas
René Lalique, mestre vidreiro e joalheiro fancês, conheceu Jaime de Castro Leitão, a terceira geração da Leitão & Irmão, em Paris. Em 1917, desenhou um faqueiro em prata que ainda se mantém em produção. Outros artistas, como Salvador Dalí ou os irmãos Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro, também assinaram peças para a casa. “Sempre tivemos uma atitude pró-activa na procura de artistas”, conta Jorge Leitão, e é com esse objectivo que visita as feiras.
A multiplicidade de peças em produção é um desafio diário. Enquanto na oficina do ouro se ultimam anéis de noivado e uma promessa-de-amor (medalha inspirada nos vitrais do Mosteiro de Santa Maria da Vitória), na oficina da prata, no andar de baixo, as mãos desdobram-se entre um Rhinoceros 1515, inspirado na xilogravura de Albrecht Dürer; um elefante com desenhos do pintor renascentista Rafael, uma novidade para a mesma colecção; colheres de chá de uma baixela; os desenhos e o molde em cera de uma oliveira milenar que há-de ganhar vida e até pequenas caixas para comprimidos em forma de conchas e bolotas. Cada um é artista no que faz, como Ibra Gueye, um senegalês que Jorge Leitão conheceu na praia do Tamariz a vender girafas e outro artesanato africano, que lhe disse ser joalheiro. O proprietário da afamada casa desafiou-o a comparecer nas oficinas e ei-lo a trabalhar há uma década com um sorriso contagiante. Não é fácil contratar mão-de-obra qualificada, lamenta Jorge Leitão. E se antigamente este era um território masculino devido à dureza das tarefas e das máquinas, as mulheres já são mais do que os homens, seja nas escolas, seja nas oficinas.
Mas quem chega para estagiar ou trabalhar, regra geral, vem de escolas como a António Arroio. José Gomes, chefe da oficina, tinha 16 anos quando entrou na Casa Leitão. Prosseguiu os estudos à noite, ainda leccionou na António Arroio e hoje reconhece que “chegam mais velhos e com melhor formação académica”. Ao longo dos anos, José Gomes foi-se adaptando a máquinas programadas por computador, sem terem caído em desuso os métodos centenários que fazem parte do seu quotidiano. “A dificuldade dos jovens que saem dos cursos com forte componente artística é a adaptação ao trabalho da oficina, que é muito duro”, sublinha Jorge Leitão.
Dos 1271 alunos que frequentam a Escola Artística António Arroio, muitos “perseguem esse ideal de ser artista”, refere a professora Filomena Lima, desde 1991 responsável pela disciplina de Projecto e Tecnologia, em que aborda “a dialéctica entre o criar e o fazer”. Junto ao portão deste estabelecimento de ensino em Lisboa, jovens em período de recreio fumam, tocam guitarra, conversam numa espécie de dialecto composto por sílabas soltas. “Ia.” “Lol.” “...da-se.” A indumentária e os cabelos reflectem a atitude rebelde de quem quer ser diferente a qualquer custo. À entrada, na parede principal, pode ler-se em letras gordas: “O nosso saber faz-se.” Faz-se nas oficinas, em aulas práticas, descobrindo o comportamento de materiais, testando.
Rui Trindade, professor há 17 anos nesta escola, mas dedicado ao ensino há muitos mais, “sempre a aprender com eles”, sabe que nem todos singram, mas alguns deixam antever o sucesso pela vontade e pelo empenho. “Temos alunos que vêm de longe todos os dias, Setúbal, Santarém, esses são os que querem e se esforçam mais.” O interesse em ourivesaria tem aumentado, de tal forma que, este ano, há duas turmas. No total, cerca de 90 alunos. Se há quem venha pela área, “outros encontraram esse apelo quando confrontados com a alquimia da transformação dos materiais ou através da relação afectiva que o professor consegue transmitir”, refere Lia Morais, que aqui estudou, foi prateira na Casa Leitão e voltou para se dedicar ao ensino, já lá vão 17 anos. Ela é uma dessas professoras que falam da ourivesaria com uma paixão contagiante. Na António Arroio estimula-se a criatividade, explora-se o artista que há em cada um, para muitos é o primeiro contacto com o mundo das artes.
A norte, o Cindor-Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria, em Gondomar, é uma referência. “Temos uma excelente formação técnica que nos distingue, mas temos de fazer uma aposta maior no design e na inovação”, diz Eunice Neves, directora da escola. Daí o lançamento de novos cursos em design e fotografia em joalharia e vitrinismo ou higiene e segurança em ourivesaria, fundamentais para esta nova forma de o sector se apresentar ao mundo. Do universo de cerca de 3600 alunos, 60% passam pelas áreas de ourivesaria e joalharia, entre o ensino secundário e a formação modular. “O sector está mais receptivo e a empregabilidade, findos os estágios, está a aumentar”, diz.
É na PortoJóia que se namoram as empresas para receberem os alunos, mostram-se os trabalhos e trocam-se contactos. O stand do estabelecimento de ensino criado em 1984 através de um protocolo entre o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e a AORP (à data, denominava-se Associação dos Industriais de Ourivesaria e Relojoaria do Norte), o único centro de formação orientado especificamente para o sector, está hoje lado a lado com stands de ex-alunos. Serafim Lima, há 27 anos formador na escola, não esconde o orgulho: “Dá gosto ver pessoas que ensinámos a ter tanto sucesso.”
Um medo terrível de arriscar
Só a Escola Superior de Artes e Design (ESAD), de Matosinhos, tem actualmente formação superior em Joalharia, no curso de Artes. Olga Noronha, 26 anos, designer, a residir em Londres, vai passar a coordenar a licenciatura. À intensa actividade criativa que a faz estar presente em cada edição da ModaLisboa, desde 2013, junta a actividade académica e a investigação – deve concluir em Janeiro o doutoramento sobre “medicaly prescribed jewellery”, em que explora a extensão e a restrição do corpo, ponto de partida para o seu universo criativo. “Preciso de tudo isto para me sentir completa, não conseguiria escolher uma vertente”, diz. O seu percurso é o exemplo do quanto é preciso arriscar para se destacar neste sector. Soube cedo o que queria, foi com esse objectivo que estudou na Escola Artística de Soares dos Reis, no Porto, seguiu para Londres, onde se licenciou no Saint Martins College of Art & Design, fez o mestrado no Goldsmiths College, da Universidade de Londres, e prepara agora a tese final de doutoramento. Filha única, pais médicos, foi a sua curiosidade que a conduziu à joalharia.
Aos 17 anos expôs na Presidência da República, na mostra Joalharia e Símbolos Nacionais, tendo ficado entre os dez finalistas de um concurso para artistas emergentes. Recorda bem aquele dia e as palavras de uma passante que, inadvertidamente, a instigou a lutar todos os dias quando lhe perguntou a idade e comentou espantada: “Credo, se faz isto aos 17, o que fará aos 24?” Percebeu que quanto mais depressa fizesse o seu caminho, maior seria o impacto. Estava certa. Aos 21, uma peça sua foi escolhida para representar o seu ano lectivo na exposição retrospectiva do Saint Martins – outro dos escolhidos foi Alexander McQueen, um dos seus ídolos. Aos 23 anos as suas peças desfilavam na plataforma para jovens talentos da ModaLisboa. Aos 24 estava lançada. Produz peças exclusivas, sobretudo, para coleccionadores de arte, investidores e clientes privados. Pelo meio integra exposições, conferências em universidades, da Califórnia a Milão e Macau, tem clientes como o cantor de Hong Kong Aaron Kwok, está em capas de revista como o número coleccionável dos 50 anos da Elle Taiwan ou em campanhas da BMW.
A fazer planos para regressar ao Porto no início do ano, Olga Noronha reconhece o quanto é difÍcil ter êxito nesta area. “Se tivesse seguido o caminho da ourivesaria e joalharia tradicional, não teria conseguido. Nada do que faço tem intuito comercial, quero provocar reacções, podem falar bem ou mal do meu trabalho, mas falem. Desafio-me sempre, nunca uso os mesmos materiais, experimento formas que nunca trabalhei. Corto-me, queimo-me, mas é como se estivesse anestesiada. Há muito sangue, suor e lágrimas.” Mesmo quanto revisita a filigrana, os corações de Viana e se deixa provocar pela Ode Triunfal, de Álvaro de Campos – “E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações/ Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!” – e pelo fado. Procura exceder-se movida por esta relação de amor/ódio, o amor com que trabalha e o ódio que a empurra para terrenos desconhecidos e a faz evoluir. “Notam-se as mudanças no sector, muito graças ao trabalho da AORP, que está a dizer a quem começa: ‘Façam que nós apoiamos.’ Mas os portugueses têm muito medo de arriscar no que se faz e no que se usa”, diz a designer.
Valentim Quaresma não podia estar mais de acordo. Não são só os clientes, porque esses aparecem sempre, em qualquer parte do mundo, mas os alunos que chegam para estagiar. “Quando entram no atelier, tudo é uma surpresa, não estão preparados para este mundo criativo, onde tudo é possível fazer, não há limites.” Por isso, diz a quem começa que é preciso “perseverança, optimismo e criatividade”. A equipa de 15 pessoas tem, neste momento, oito estagiários que vão ficar por dois ou três meses, muitos são estrangeiros à boleia do protocolo com a Euroyouth Portugal, uma agência que trabalha numa rede internacional e proporciona estágios locais. “Ponho-os a experimentar materiais, a pensar, a criar. Já houve quem só ficasse um dia, porque nem todos estão talhados para as indústrias criativas.”
Descentralizar e piscar o olho à moda
Valentim Quaresma e Olga Noronha integram o calendário da ModaLisboa com as suas criações de joalharia ao lado de designers de moda. Houve tempos em que comprar peças de ourivesaria que passariam de geração em geração era um investimento. A crise mundial fez perder esse hábito de consumo, mas a moda voltou a pedir que se usem jóias, clássicas ou de vanguarda, mas usem-se. Voltou a inspiração barroca, das peças vistosas, a par de linhas minimalistas. Revisitou-se a pompa das cortes, a ostentação dos czares, o flower power dos hippies da década de 60.
Ninguém fica indiferente. Entre a classe política, as jóias servem para passar mensagens subliminares. Num artigo recente do The Economist podia ler-se: “A joalharia valiosa é hoje usada de forma mais subtil – para sublinhar uma mudança na mensagem, alcançar uma audiência específica ou sugerir um lado mais irreverente de uma imagem sóbria.” E dá o exemplo de Hillary Clinton, que trocou o pesado par de brincos em ouro, diamantes e safiras dos seus dias de primeira-dama por um simples par de argolas, uma corrente e uma pulseira com uma fotografia da neta Charlotte, para “minimizar o seu lado arrogante”, concluem os analistas.
Como pode a indústria não se associar à moda que tanto a pode ajudar? Marcas como a Cartier ou a Tiffany&Co. sempre o fizeram. É aqui que entra em cena Milla Jovovich, que chama agora a atenção para a ourivesaria nacional. E é com esse objectivo que a PortoJóia anuncia um novo evento que vai decorrer em Abril, no Convento do Beato, em Lisboa, o Iconic, sob o mote “The future will be powerfull”. Este saber ancestral está mais centralizado a norte, desde Gondomar, Braga, Póvoa do Lanhoso, Cantanhede, Viana do Castelo, onde o fabrico está enraizado, mas faz sentido levar esta montra a Lisboa. Jorge Leitão aplaude a visão dos seus antepassados quando mudaram o negócio do Porto para Lisboa. “Sempre fez sentido estar na capital e é aqui que queremos continuar a apostar.” É com a mesma estratégia que no dia 1 de Dezembro abre mais uma loja, no Estoril, “um ponto turístico incontornável e onde se encontra poder de compra”. Ainda que nunca tenha arriscado na internacionalização, deixa para a loja online esse papel.
"O conceito da Iconic será diferente da PortoJóia, associado à moda e ao lifestyle e mais vocacionado para o consumidor.” A directora do evento, Amélia Monteiro, sublinha o facto de as compras já não serem por investimento, mas são o design, a exclusividade e a identificação com a marca que estimulam o consumo. A moda abre este apetite voraz. “Cada vez mais tem de haver um entrosamento entre joalheiros, mestres e designers de moda, é isso que estamos a tentar provocar.” Olga Noronha vê com bons olhos esta atitude: “Há esta noção que a joalharia é do Norte, mas há muita coisa a acontecer em Lisboa e, desde que não se tente canibalizar o outro ou entrar em bairrismos, a junção será produtiva.”
Há a moda e há o luxo, e é este que gera dinheiro mesmo em tempo de crise. Em todas as áreas, o trabalho manufacturado, no qual assenta a exclusividade, foi resgatado pelas marcas internacionais para as suas colecções. Christian Louboutin, por exemplo, o rei dos sapatos de sola vermelha, que calça celebridades e tem casa em Lisboa e em Melides, no Alentejo, onde passa cerca de três meses por ano, encantou-se com a filigrana e juntou-a numa das suas colecções. Conceição Neves, formadora do Cindor, 32 anos de filigraneira, arte que aprendeu com a mãe, começou a laborar no ofício com oito, viu as suas peças ascenderem a esse universo das revistas de moda e das red carpets. “O contacto foi feito através de uma aluna e acabei por fornecer uma peça para uma colecção limitada de Christian Louboutin”, conta. Como todos os curiosos, quando se dá a conhecer o processo de produção, a arte, não há como não valorizar o trabalho que uma jóia encerra. A sua empresa, em Gondomar, integra a Rota da Filigrana (www.rotadafiligrana.pt) que permite aos visitantes conhecerem as oficinas e ouvirem as histórias contadas por quem executa as peças e isso repercutiu-se nas vendas. É esse o luxo: ver fazer, acompanhar o processo, ter acesso ao artista.
Olga Noronha gosta, particularmente, desse entrosamento com o cliente, ouvi-lo, compreendê-lo, conhecer-lhe os gostos, esse aspecto é fundamental no seu trabalho. Para daqui a ano e meio, dois anos, projecta o lançamento de uma linha de alta joalharia, que estimule esse contacto e sublinhe esse aspecto exclusivo das suas criações. “A produção em massa não é o caminho.” Entre todas as peças da Leitão & Irmão, o proprietário conta que são as peças feitas por medida as mais desejadas. “Continua a haver pessoas que querem ter a sua jóia, que falam com o mestre joalheiro, que transmitem a ideia e o que resultar é algo de muito pessoal e isso não tem preço, essa é a ideia mais próxima de luxo nos dias de hoje.”