Elas
Uma das primeiras heroínas de Paul Verhoeven, Renée Soutendijk, e a última, Isabelle Huppert, dialogam, entre o DVD e a sala de cinema.
A primeira heroína verhoeveniana foi Renée Soutendijk - houve mulheres sobreviventes antes, mas esta fundou uma ambição. A mais recente é Isabelle Huppert
Renée, para escapar ao cheiro do azeite, das batatas fritas e das almôndegas que vendia em caravana, foi derrubando homens, paramentando-se com a fatalidade - deixou um paraplégico e um homossexual pelo caminho, sobrou-lhe o tipo mais desajeitado, mas ganhou o restaurante. Isabelle colhe os ventos da tempestade que a derrubou – caiu, mas levanta-se e anda para a frente, impulsionada não pelo milagre, porque não é crente, mas pelo instinto de sobrevivência, pela curiosidade perante o homem que lhe entrou pela casa dentro e a violou.
Encontraram-se as duas, por estes dias, em França, onde Spetters (1980) foi editado em DVD, em versão restaurada e director’s cut, e Elle (2016), que estreara em Cannes, está nos ecrãs de cinema. No primeiro filme, Renée Soutendijk antecipara aquilo que ela própria seria em O Quarto Homem (1983) em modo kitsch e arty; foi ela o embrião da Sharon Stone de Instinto Fatal (1992), um elo de solidariedade proletária com a Elizabeth Berkley de Showgirls – solidariedade, também, entre vítimas de uma catástrofe mediática, porque por estes dois filmes Paul Verhoeven foi destratado em público; em 2006, em Livro Negro, Carice van Houten continuaria os pergaminhos dessa linhagem, como mulher judia que subia para a bicicleta dos nazis deixando a saia ser afagada de forma travessa pelo vento da II Guerra Mundial.
Isabelle Huppert é, agora, uma versão elevada disso. Identifica-se por inteiro em Elle, numa sequência de festa, uma canção cujos acordes tinham apenas breves segundos de exposição em Spetters: era, é, essa canção Lust for Life, por Iggy Pop. O título é todo um programa de arrebatamento da heroína verhoeviana. É um momento extático, Elle. Huppert, que passou ao produtor Saïd Ben Saïd o livro de Philippe Djian que o filme adapta, entra pelo património verhoeveniano, abandona-se nele (num simples acordo verbal, disse que faria o que o realizador quisesse dela) e atravessa-o com os seus dotes naturais de assombro e ironia. Ouve-se por inteiro a música de uma heroína.
Verhoeven não podia ter feito (ainda) com Soutendijk o que faz agora com Huppert. Por várias razões – a não menos importante é que Soutendijk, obviamente, não é Huppert –, mas principalmente porque a actriz francesa é já detentora de um património pessoal que o cineasta aproveita como se o filme fosse uma hipótese de metamorfose. Faz dele o princípio da mise-en-scène. Tal como no seu “período holandês” foi fazendo, em cada filme, a sua hipótese de cinema americano antecipando a real passagem para Hollywood que aconteceria em 1987 com Robocop - Spetters, por exemplo, mostra as suas dívidas para com Saturday Night Fever (John Badham, 1977) ou Blue Collar (Paul Schrader, 1978) –, em Elle vai “isabellehuppertando”. É por isso que a sublime entrevista da actriz aos Cahiers du Cinéma de Junho é o filme falado. Há momentos de uma clarividência tão feroz - por exemplo, quando Huppert, num vislumbre buñueliano, diz que Elle se autonomina das partes que o compõem, “como uma galinha à qual se corta a cabeça e que continua a correr” – que é mesmo o filme a falar.
E o que é que elle diz? Isabelle fala do seu “estado de assombro”, do molho de ironia, da distância e humor, com que afronta as personagens. Uma personagem é sempre algo entre a construção, uma forma, e a convocação da parte “mais autêntica” de si própria. É “être soi et pas soi”.
Vejamos: a autenticidade, continua, é interpretar como sente a cena, como se fosse uma espectadora. “Interpreto como uma espectadora, na verdade. Não como uma actriz”. Ainda: “Quando somos actores também actuamos como espectadores. Somos leitores e espectadores antes de sermos actores. É isso também ser actor: restituir o sentimento que se tem como espectador.” É a possibilidade de uma coincidência, possibilitar uma experiência comum: ela vê as coisas acontecerem-lhe ao mesmo tempo que o espectador do filme. Do lado de cá, então. passa-se assim: Elle acontece-nos e quando acaba apetece a ele regressar para eternizar esse presente.
Os homens de Verhoeven sempre foram mais angustiados nas suas correrias, chegando a momentos de crise – Robocop (com Paul Weller) e Total Recall (Arnold Schwarzenegger) são explícitos nisso – em que perguntam quem são, quem afinal se esconde dentro deles, dentro daquelas máquinas de adrenalina que foram desapossadas de memória e ficaram sem moral. As mulheres sempre se abandonaram ao momento, ao presente. Vitais, sempre escolheram a disponibilidade. Lust for life! Mas Isabelle Huppert completa Renée Soutendijk com uma possibilidade de serenidade e de contemplação: pode ser espectadora de si própria, da sua personagem (pode ser espectadora da linhagem verhoeveniana), sobrevive, e mais do que isso, sobrevive a si própria. Há decantação, encantamento: é humana, é essa a ferocidade dela. Podemos falar dessa maneira do actual momento do cinema de Paul Verhoeven: Elle é um filme enlevado pela contemplação de si, os tempos da turbulência kamikaze de Spetters estão lá atrás.
Spetters foi o filme que fez depois do sucesso de O Soldado da Rainha (1977), que deslumbrou Steven Spielberg, levando-o a contactar Verhoeven: que viesse para os Estados Unidos porque a Holanda era demasiado pequena, convidou. Depois de um filme sobre a jovem elite holandesa, o cineasta dava continuidade à carreira com um filme sobre um grupo de motards que faziam figura de elefantes na louçaria conservadora holandesa. A explicitação sexual foi considerada excessivamente próxima do exploitation, Verhoeven foi olhado como burguês que objectificava um mundo proletário com o qual nada tinha a ver, houve pedidos de boicote, piquetes de manifestações, agressões em programas de televisão (algumas das coisas repetir-se-iam nos EUA com Showgirls), e a sua “desclassificação” como “não autor” atingia um pico de crise. (E até Spielberg se calou). Mas o que surpreende hoje no filme, que talvez tenha sido uma das descobertas da retrospectiva que o IndieLisboa dedicou ao cineasta, é o pacto de entendimento com as personagens. Spetters é um retrato de grupo. Elle, apesar do domínio de Huppert, que está em todas as cenas, também o é, sendo um upgrade na forma como consuma uma disponibilidade que se pode dizer "renoiriana" (nem de propósito: Verhoeven citou A Regra do Jogo na conferência de imprensa do Festival de Cannes) para com as razões das suas personagens, as que têm fé e as que só conseguem sobreviver com o cepticismo. A elas a câmara regressa sempre, e outra vez, para as ir buscar: a ela, Huppert, ao amante dela, à mulher dele...