Um livro para ler e ver (também) com os dedos
Concebido para ser acessível a crianças cegas ou com baixa visão e às que vêem bem, este álbum ilustrado explora diferentes formas de pensar “a casa”. Dentro e fora.
Um projecto da Trienal de Arquitectura de Lisboa, Uma Casa É Uma Montanha É Um Chapéu “aponta para a variedade de escalas do habitar — o território, a cidade, a sala de jantar — e para como construímos a nossa casa comum com a intervenção no ambiente — a montanha — e criando artefactos — o chapéu —, e deixa adivinhar elementos da narrativa”, descrevem as autoras do texto, que enaltecem a colaboração de Fátima Alves, da Locus Acesso, no Open House Lisboa.
Numa linguagem simples, explora-se neste livro as muitas vertentes da arquitectura a partir da “casa”, da porta à paisagem.
“Este álbum ilustrado e táctil foi concebido de forma inclusiva, para ser acessível e experienciado tanto por crianças normovisuais quanto por crianças cegas ou com baixa visão”, prosseguem via email Filipa Tomaz e Letícia do Carmo.
“Para que o possam fazer em conjunto, às ilustrações simples e de cores contrastadas, sobrepõe-se contornos, superfícies e texturas em alto-relevo para a leitura da imagem pelo tacto. O texto tem tamanho grande, num tipo de letra desenhada para ser acessível, com transcrição em Braille nas mesmas páginas.”
O livro começa assim: “A casa é um lugar e um abrigo. Protege da chuva e do vento, do calor e do frio.”
Muitas tentativas, muitos erros e acertos
Para a ilustradora, Yara Kono, que tem a arquitectura como um dos seus temas de interesse, foi um prazer e grande um desafio “mergulhar” nesta demanda. Conta ao PÚBLICO: “Quando o Planeta Tangerina recebeu o convite para colaborar neste projecto e ele me foi apresentado, não hesitei em aceitar o desafio. O texto acabou por chegar-nos bastante afinado, por isso a Isabel [Minhós Martins] decidiu não interferir.”
O processo de ilustração e concepção gráfica foi exigente e durou mais tempo do que é costume. “Teve muitas fases, muitas voltas, muitas tentativas, com muitos erros e acertos, até chegarmos ao resultado final. Aprendi muito, mas sempre aprendo muito num projecto de livro ilustrado”, descreve.
Assinala ainda: “Não deixei de usar as cores, formas e técnica com que geralmente trabalho. A ideia era mesmo essa, tornar este objecto-livro acessível ao leitor cego e de baixa visão, sempre tentando manter as características do álbum ilustrado, dentro do possível.”
Mas as ilustrações tiveram de ser adaptadas para oferecerem uma leitura mais acessível a todos os públicos. “Revi algumas cores da paleta escolhida, estive mais atenta às dimensões e posições das personagens, simplifiquei e revi alguns elementos gráficos e fui mais precisa e segui mais orientações do que o habitual para as ilustrações mais técnicas”, recorda, feliz com o resultado.
Um livro-objecto muito bonito e especial que mereceu ser finalista dos Prémios Nova Bauhaus Europeia 2023.
Yara Kono acha importante assinalar que as ilustrações tiveram duas artes finais: “Uma para a impressão offset e outra, em vectores, para os relevos.” E explica: “Em algumas ilustrações, os relevos diferem ligeiramente da sua versão original em offset. Nada foi feito ao acaso, cada pormenor foi pensado e tem um propósito.”
Fundamental no apoio técnico foi a Gráfica Maiadouro, através de Rui Oliveira, com muita experimentação de diferentes técnicas de produção e afinação de cunhagem do relevo para produzir 1500 exemplares consistentes e robustos.
Foram “inúmeros os testes que fizeram para o ajuste do relevo e escolha do papel, formato e acabamentos”, diz a ilustradora, que reforça a intervenção de Fátima Alves, consultora da Locus Acesso, “imprescindível na concretização deste projecto”.
As técnicas de produção de um livro como este são muito dispendiosas, sendo essa a principal razão para a oferta de livros tácteis ser rara, justificam as autoras do texto e informam: “A Trienal de Arquitectura é uma organização sem fins lucrativos financiada pela Direcção-Geral das Artes. Para conseguir levar a cabo este projecto ambicioso, contou também com o apoio das muitas pessoas que contribuíram numa campanha de crowdfunding, para a qual a Fundação Millennium BCP fez uma generosa doação, e com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.”
Para ir testando a eficácia do livro, fizeram-se pequenos workshops com crianças da Associação Bengala Mágica e do Agrupamento de Escolas Romeu Correia, “que engloba escolas do domínio da visão, com técnicos cegos da instituição de reabilitação Nossa Senhora dos Anjos”, contam as autoras. Rui Jacinto, uma pessoa cega que colabora com a Locus Acesso, participou na revisão do Braille e na exploração final dos relevos.
O livro termina assim: “A casa é sonhada, imaginada, pensada. Depois é arquitectada e desenhada. É enfim construída, para ser vivida!” Tudo verdade.
Damos por nós a fechar os olhos e a acariciar cada página com a ponta dos dedos.