A casa assombrada do padre Joaquim
Os meus primeiros anos de vida foram passados numa casa decrépita que fora habitada por um padre acusado de ali celebrar “culto clandestino”. Estaria mesmo assombrada como temiam os meus pais?
Os meus pais casaram-se em janeiro de 1977, sem qualquer apoio da família. Num país que tinha acabado de receber quase meio milhão de “retornados”, a melhor casa que encontraram para viver, após meses de procura, era demasiado grande, demasiado antiga e sobretudo demasiado cara para os rendimentos que tinham na época: 5000 escudos de renda, o equivalente hoje a quase 550 euros, considerando a inflação, quase tanto como o ordenado do meu pai como empregado de mesa num café de Espinho (6000 escudos, menos de 650 euros aos dias de hoje). Deveria ter sido uma solução transitória até encontrarem uma casa melhor e mais confortável para a família que queriam construir, mas acabaram por lá ficar dez anos. Foi enquanto ali viviam que nasceu, primeiro, a minha irmã Rute, depois eu e finalmente o meu irmão Paulo.
A minha mãe não tinha um emprego fixo. Com uma máquina de costura que comprou com o primeiro dinheiro que conseguiu poupar, aos 18 anos, e uma máquina de malhas que adquiriu graças a um empréstimo de um irmão, fazia peças para uma fábrica de vestuário infantil. Dia sim, dia não, também enchia dois grandes sacos de viagem com roupas que comprava em fábricas ou que ela mesmo confecionava, apanhava um autocarro para o Porto e calcorreava os mercados de São Roque, Bolhão e Bom Sucesso, negociando com as vendedoras as roupas que trazia consigo. No Mercado do Bom Sucesso, última paragem do seu périplo, enchia depois os dois sacos com comida para levar para casa “e ainda muitas notas para contar”.
A casa que os meus pais arrendaram ficava às portas do Bairro da Ponte de Anta, também conhecido como “Bairro do Texas”, porque ali parecia imperar a lei do faroeste. Era uma decrépita moradia apalaçada, mobilada com móveis antigos de madeira maciça e escura, e enormes espelhos nas várias divisões, fria, pouco confortável e habitada por vários ratos. Tinha muitas janelas e varandas, e uma escadaria de pedra aos pés da qual se encontrava um grande jardim e um terreno de cultivo junto a um ribeiro. Tinha dois pisos: no de cima, moravam os meus pais; no de baixo vivia uma senhora idosa, irmã do antigo inquilino do primeiro andar, o padre Joaquim Amaral, pároco de Espinho durante praticamente toda a primeira metade do século XX.
No meio de uma disputa sobre a utilização da Igreja Matriz, a casa do padre Joaquim foi palco de várias cerimónias religiosas privadas, o que levou a que, em 1913, fosse instaurado um processo disciplinar ao pároco, proibindo-o de residir durante 16 meses dentro dos limites do concelho por realizar “culto clandestino”. É possível que tal facto tenha contribuído para uma lenda que se eternizou entre os populares: a de que o padre ali celebrava exorcismos e outras práticas em que comunicava com o Além.
Por causa da lenda, impossível de confirmar, tememos sempre que aquela pudesse ser, de facto, uma casa assombrada. Ouvíamos passos e gritos no piso térreo que não sabíamos a quem atribuir, desconfiávamos se era mesmo o vento que fazia bater portas e janelas, entrávamos a medo nas divisões escuras. Qualquer acontecimento ou fenómeno difícil de explicar logo redobrava os nossos receios. Quando, numa noite, a minha mãe deu com a minha irmã a dormir no tapete do corredor porque sentia que o espelho do armário do quarto dela tinha “uma coisa horrível” que a puxava para dentro dele, não descansou enquanto não tapou o espelho. Crescemos também com medo de nos aproximar da senhora que vivia no andar de baixo, porque nos convencemos, eu e os meus irmãos, de que ela era uma bruxa. Se por algum motivo tínhamos de nos aproximar da sua porta, passávamos primeiro pela cozinha e muníamo-nos de facas para que nos pudéssemos defender.
A minha mãe garante que também vivemos momentos felizes nessa casa, mas o que me sobreviveu na memória foram os acontecimentos mais traumáticos. Foi lá que, com menos de um ano de vida, empurrei uma almofada para cima de um aquecedor a óleo e provoquei um incêndio que me podia ter carbonizado (não me lembro obviamente do episódio, mas tenho-o marcado no joelho e na canela da perna direita). Foi também lá que, aos três anos, levei uma chinelada épica da minha mãe porque, aproveitando que ela estava a cuidar do meu irmão recém-nascido, saltei da janela do quarto e caminhei durante quase três quilómetros até casa da minha avó materna para reclamar uma fatia de bolo que ela me negara na véspera.
Foi também lá que a minha irmã Rute me rachou a cabeça com um banco, porque me sentei “no cavalinho dela” (o dito banco). Foi lá que escapámos por pouco a uma iminente explosão porque o meu pai se esqueceu de desligar o fogão à noite e este aqueceu tanto que pegou fogo, ao lado da botija de gás (valeu-nos que a minha irmã percebeu que algo não estava bem e o meu pai, vencido pela insistência dela, foi à cozinha e deitou as mãos à botija de gás, retirando-a para o jardim). E foi enquanto lá vivíamos que, aos seis anos, se percebeu que eu estava cego do olho direito por causa de um parasita, toxocara canis, que provavelmente me foi transmitido por um cão ou outro animal. Terá sido o nosso Misha? Nunca saberemos e também pouco importa. O certo é que se a casa não era assombrada, pelo menos parecia amaldiçoada.
Pouco tempo depois, quando tinha oito anos, mudámo-nos finalmente para um apartamento novo no centro de Espinho, que os meus pais compraram diretamente ao construtor, a prestações, pagando juros de 15%, porque os juros bancários rondavam os 20%. Por fim, a casa que os meus pais sonharam e pela qual tanto lutaram. Foi no pátio desse prédio que construímos todos os nossos sonhos de miúdos, longe de assombrações e fenómenos paranormais. Ainda me emociono de cada vez que lá regresso e fecho os olhos, vendo-me de novo ali a jogar futebol ou a esperar a Salomé, a minha primeira paixão adolescente.
A casa do padre Joaquim está hoje ao abandono. Nunca mais lá voltei desde o dia em que nos mudámos. Gostaria de acreditar que deixei lá os meus fantasmas, mas é provável que nunca nos livremos deles.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990