Biblioteca Municipal da Maia: Alma de tronco de árvore
A afluência à biblioteca municipal é transversal a todos os grupos etários, que utilizam o equipamento de acordo com as suas necessidades e interesses específicos.
A Biblioteca Municipal da Maia tem desenvolvido diversas iniciativas com impacto significativo na comunidade, oferecendo "atividades que proporcionam acesso à informação e cultura, mas também fortalecem a coesão social, promovem a inclusão e incentivam a participação ativa da comunidade na vida da biblioteca", começa por declarar Patrícia Loureiro, chefe de divisão da biblioteca. Como destaque, escolhe Histórias Fiadas, que reúne, todos os sábados de manhã, crianças e famílias para se deliciarem com a narração de contos. "Notamos uma boa afluência de crianças e famílias nesta atividade que cria um ambiente acolhedor e divertido que atrai tanto crianças quanto os adultos que as acompanham."
Os encontros familiares, explica a responsável, são "fundamentais para enriquecer a experiência de leitura e fortalecer os laços familiares e comunitários, fazendo com que estas histórias contadas incentivem a imaginação das crianças e despertem nelas o gosto pela leitura desde cedo. Além de que a regularidade deste evento cria um sentido de rotina e expectativa que transforma a biblioteca num ponto de encontro essencial para a comunidade."
A promoção da leitura entre as crianças requer uma escolha cuidadosa de contos e histórias que despertem o seu interesse, mas a equipa que dinamiza as atividades utiliza também outras estratégias, explorando detalhadamente o formato físico do livro e analisando a capa, contracapa, lombada e a etiqueta de cota com informações da biblioteca, de forma a despertar a curiosidade e a compreensão das crianças sobre a estrutura de um livro e como é feita a arrumação nas estantes.
A afluência à biblioteca municipal é transversal a todos os grupos etários, que utilizam o equipamento de acordo com as suas necessidades e interesses específicos: "O público infantil é muito presente, especialmente através de visitas organizadas com as escolas, onde participam na atividade ‘Contos Contigo Conto’ e noutras sessões de contos, como as já referidas ‘Histórias Fiadas’", continua. No extremo, está o público sénior. "Temos leitores assíduos de publicações periódicas e utilizadores muito frequentes dos computadores nessa faixa etária, o que confirma que atendemos a uma vasta gama de interesses."
Nos últimos anos, verificaram-se algumas mudanças no comportamento dos utilizadores da biblioteca. Muitos utilizadores passaram a valorizar os espaços colaborativos, como a sala de grupos, cada vez mais requisitada para realização de trabalhos académicos e projetos coletivos e reuniões por videoconferência. "Os jovens também são presença constante na biblioteca. Procuram sobretudo um ambiente propício para o estudo e valorizam o acesso aos documentos, à internet e ao espaço da biblioteca que lhes permite estudar individualmente ou trabalhar em grupo. O nosso espaço tem-se tornado multifuncional, sendo usados tanto para atividades presenciais quanto para interações virtuais, o que reflete a adaptação às novas tecnologias e às necessidades de trabalho remoto e de estudo a distância."
Conversei com uma rapariga e um rapaz sobre a frequência da biblioteca e hábitos de leitura. "Só venho estudar, é mais fácil de me concentrar porque vejo os outros a estudar e sinto mais pressão! Leio cerca de uma dúzia de livros por ano, só policiais, mas não levo daqui, vou à livraria e compro à toa", conta Diana Pires, de 18 anos. A uma dezena de metros, encontro Diogo Azenha, futuro médico. "Gostava de seguir ortopedia ou cirurgia, vamos ver como corre. Só costumo utilizar a biblioteca para estudar, mas leio bastante em casa, a minha mãe é professora de Português e, por isso, ler sempre foi normal para mim. Gosto de policiais e geopolítica."
Patrícia prossegue a explicação sobre as valências da biblioteca: "Gostava ainda de salientar que, desde setembro de 2020, existe no piso -1 a Praça Fernando Campos, um espaço dedicado à promoção de diversas atividades culturais."
Ora, a sugestão de Patrícia para a Road Trip Literária foi precisamente a biografia de Fernando Campos, um escritor natural da Maia, falecido em 2013, e cuja obra e legado literário são uma inspiração para a comunidade maiata. Intitulado À Procura do Homem da Máquina de Escrever, o livro tem uma autoria incomum, resultando do trabalho colectivo dos seis filhos do escritor, com a colaboração de netos, sobrinhos, irmãos e mais algumas pessoas que fizeram parte da vida de Fernando Campos.
O livro, que tem o subtítulo "Um retrato escrito pela família", narra detalhadamente a vida do autor e apresenta excertos dos seus 15 livros e de outros textos, como é o caso deste pequeno registo autobiográfico de "Era quarta-feira e chovia":
"Aquele que ali vai sou eu aos nove anos — a jogar a roça, o pião, a chapinar os pés nas poças da chuva, a nadar no rio de Mouros, em Malta... aos doze a olhar as pernas das raparigas, aos catorze a marrar a lição de latim no colégio interno, nos Carvalhos, em Trancoso, a rilhar de noite, na camarata, às escondidas, castanhas piladas e nozes com figos secos..."
Outro apontamento autobiográfico é este excerto do segundo livro de Fernando Campos, O Pesadelo de dEus (1990):
"Sonhos marchetados de deformações, de fragmentos da infância, de leituras, da experiência vivida ou adivinhada. Na modorra que precede o dormir, lembrava-me do meu primeiro estojo de desenho, da primeira caixa de lápis de cores, das primeiras aguarelas. Meu pai a ensinar-me a desenhar a carvão. Eu a esculpir um pedaço de madeira com um cinzel feito da chave de parafusos da máquina de costura da tia Tança. Num dedo ainda a cicatriz de um golpe falhado..."
Por fim, partilho um trio de frases do livro que dá o título à biografia:
"A verdade é que o assunto não importa. Ele surgirá por si. É a isto que se chama inspiração. O que interessa é um bom título."
O Homem da Máquina de Escrever foi também o nome da exposição que celebrou o centenário do nascimento do autor e que esteve em exibição no Fórum da Maia entre julho e setembro deste ano, onde foram capturadas as fotografias que acompanham esta crónica.
Na Biblioteca Municipal da Maia, os livros mais requisitados são, de longe, os livros infantis, reflexo das atividades regulares direcionadas para esta faixa etária. "Registamos um elevado número de empréstimos em resultado das iniciativas, com as crianças frequentemente a levar o máximo de exemplares permitido", explica Patrícia Loureiro, que acrescenta que, entre o público geral, "há uma preferência significativa pelos livros de literatura, com destaque especial para o romance, indiscutivelmente o género mais requisitado, abrangendo desde clássicos da literatura até romances contemporâneos. Para promover a leitura, procuramos estar atentos às sugestões e necessidades específicas dos utilizadores e ter uma abordagem abrangente, ajustando as aquisições de forma a tornar a coleção mais inclusiva e representativa dos interesses do público. Outro dos aspetos centrais é a necessidade de acompanhar as novidades editoriais e as tendências do mercado literário para que a biblioteca tenha documentos atualizados, atrativos e relevantes."
Missão da biblioteca são ainda as parcerias e projetos com outras instituições culturais e educativas. "Mantemos diversos projetos enriquecedores, especialmente com as escolas do concelho, mas também com lares e centros de dia. Recentemente, propusemos a construção de uma árvore de Natal composta por quadrados de croché realizados pelos lares e centros de Dia, bem como por toda a comunidade em geral, para reforçar o sentido de comunidade e inclusão, promovendo o envolvimento ativo de todos nas atividades culturais do município. Estamos comprometidos em fazer da Maia uma ‘Cidade amiga da literatura e das histórias’", conclui.
A finalizar, e como um convite à reflexão, deixo uma frase do poema "O Vagabundo" (1948), de Fernando Campos:
"Tinha alma de tronco de árvore: em si próprio se abrigava."
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990