Biblioteca Municipal de Torres Vedras: Escutar o outro
O espaço tem três pisos e algumas características peculiares, como a magnífica sala de leitura de adultos, com telhado alto e interior em madeira exposta, pintada de branco, com traves que se cruzam.
A Biblioteca Municipal de Torres Vedras (BMTV), inaugurada em 1934, transitou a 25 de abril de 2016 para um edifício já centenário, onde funcionou a Moagem Clemente, de 1924 a 1990. O espaço tem três pisos e algumas características peculiares, como a magnífica sala de leitura de adultos, com telhado alto e interior em madeira exposta, pintada de branco, com traves que se cruzam. A ligar as paredes, há grossas vigas de aço que também se entrelaçam.
Foi nessa sala que conversei com Goretti Cascalheira, cujo gosto pela leitura e a vontade de ter uma profissão onde se pudesse sentir útil e uma mais-valia para a sociedade, a levou a tornar-se bibliotecária, atividade que acumula com a organização e gestão dos serviços da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. «Esta instituição celebrou 90 anos a 19 de fevereiro de 2024 e procura reinventar-se a cada dia, cumprindo o desígnio inscrito pelo então presidente da câmara, António Vitorino de França Borges, no Livro de Ouro de inauguração da biblioteca: Torres Vedras amanhã será melhor.
— É isso que procura aqui?
— Procuro servir a instituição e a comunidade, ajudando todos os cidadãos que nos procuram a colmatar necessidades, resolvendo problemas, facultando informação e dando visibilidade ao trabalho desenvolvido, individualmente ou em rede, em prol do desenvolvimento do concelho. Para isso, procuro atualizar-me em conhecimentos biblioteconómicos e estar a par das transformações e tendências do mundo, ou seja, tento ‘ler o mundo’, conforme a obra de Michelle Petit. Na gestão de recursos e na programação cultural, colaboro com a equipa da BMTV e parceiros da comunidade para acrescentar valor à promoção da leitura, da escrita e das artes.
Entre as atividades com maior impacto na comunidade, a bibliotecária refere o programa educativo de promoção do livro, leitura e escrita para crianças do berçário ao ensino secundário, que, no ano letivo 2023-2024, contou com a participação de 9332 alunos em visitas guiadas à biblioteca, hora do conto, sessões de filosofia, encontros com escritores, oficinas e leituras encenadas.
Goretti menciona ainda o programa Ao Sabor dos Sábados, para famílias com crianças até aos 12 anos, que inclui narração de histórias, robótica, formações para agentes educativos, apresentações de livros e espetáculos, em que já participaram, este ano, 1269 pessoas. E também destaca, no âmbito do Plano Local de Leitura – 2020-2027, as ações em parceria com várias entidades locais, como o 10 minutos a Ler na Empresa, iniciado em fevereiro deste ano com o propósito de fomentar a leitura na comunidade em geral, neste caso específico, numa das empresas do concelho de Torres Vedras: "Os trabalhadores da empresa usufruem de um espaço tranquilo e aproveitam as pausas para folhear as páginas de um livro, ou para posteriormente partilhar com a família os livros que se encontram disponíveis na biblioteca da empresa, cuja parte do acervo é cedido por empréstimo pela biblioteca."
E depois do trabalho, aos fins de semana, os trabalhadores desta e de outras empresas são convidados a levar os filhos à biblioteca. Sara Rodrigues, que colabora na conceção e dinamização de diversos projetos e atividades da biblioteca, realça a atividade Livros ao Colo, destinada para bebés dos 9 aos 36 meses: "É uma narração de histórias muito curta, de 30 a 45 minutos, pois os bebés têm pouco tempo de concentração. Exploramos mais a parte sensorial, com sons e tintas. Da última vez, fizemos uma atividade engraçada com tintas comestíveis."
E os bebés não se aborrecem? Não choram? "Às vezes, às vezes… Principalmente, porque tentamos criar um ambiente mais escurecido para ser mais intimista. E muitas vezes, o entrar num espaço mais escuro causa algum receio", responde Sara Rodrigues.
Na sala de leitura que já foi uma moagem, abro o livro Vila Fedra, da autoria de Luís Felipe Rodrigues, sugestão de Goretti. "É um autor muito conceituado de Torres Vedras e tem uma grande obra publicada aqui no município. Este livro cruza duas artes, dois saberes: a poesia e a fotografia. As fotografias são da autoria de Daniel Abreu, também torrense. E é um livro de poesia que espelha muito bem quem são os agentes e os rostos desta cidade. Também fala sobre o património cultural, assim como os costumes e a forma como as pessoas se relacionam com o próprio espaço da cidade. De certa forma, toca também na própria biblioteca, porque estamos aqui no centro histórico, e ele faz um bom apanhado das ruas e dos monumentos da cidade. Mas não só, também fala um pouco sobre Santa Cruz e algumas das outras localidades aqui à volta. Claro que no final fala um bocadinho sobre o Cadaval, porque é um sítio onde ele nasceu, apesar de residir aqui há muitos, muitos anos. Sendo um autor que fundou várias associações culturais, publica para o jornal. Portanto, é alguém que tem o reconhecido mérito dado pelos próprios torrenses. E eu particularmente gosto da poesia dele. Sendo simples, toca-nos. É uma poesia serena, mas com profundidade. É também por isso que sugiro este livro."
O primeiro poema, "Ao entardecer", fala-nos da beleza e da contemplação, convidando-nos a apreciar a vila de Torres Vedras ao cair da noite.
"Deixa o sol pousar nas mãos / para ver as linhas / com que se tece / a vila / ao entardecer / e a essa luz contemplá-la."
Noutro poema, Luís Filipe Rodrigues relembra a "Rua das Olarias", e a ligação entre a terra, e a busca pela perfeição na arte de moldar o barro.
"Por aqui havia um caminho até à várzea / rasgando a vila devagar / quando me perguntei
onde ficam os fornos a roda os filetes, donde / a terra bruta com que se amanha a vida / e o saber moldar tudo isso à imagem de Deus?
O que busco nos dedos é a perfeição. /
O que me acalma é o cheiro da terra / e o silêncio ao desenhá-la.
Há quantos anos e segredos a partir / do outeirinho é lembrada / esta rua esculpida por mãos de oleiro?"
E ainda as personagens icónicas da vila, como o "Quim Sapateiro":
"Passa os dias de avental à cinta martelando o couro, / para onde vou no já tanto visto e repetido ponto por ponto / de manhã à noite aos esticões na linha, de faca em punho / ou alinhavando um par de meias solas / para aviar o freguês, para onde eu vou de sovela em riste / sem mais dedos para novos remendos e descaminhos? (…)"
O Quim Sapateiro de que fala o poeta poderia ser um dos intervenientes no evento Biblioteca Humana, recordado por Goretti Carvalheira como uma das experiências mais intensas que viveu na biblioteca municipal: "Houve duas edições, em 2019 e 2023, mediadas pela torriense Salomé Abreu e coorganizadas com o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes de Torres Vedras. Uma biblioteca humana é um conjunto de pessoas, onde cada uma representa um livro, partilhando histórias que enriquecem o coletivo e valorizam o indivíduo. É um espaço de partilha, desconstrução de preconceitos e criação de empatia e compaixão. Para cada livro há um tempo de partilha, e para cada leitor há um tempo de perguntas. Há um caminho que se faz em conjunto, em que vemos o outro em nós e nos vemos no outro. Na primeira edição, tivemos oito ‘livros’ que exploraram a escrita criativa e o storytelling, e foram ‘lidos’ por 25 leitores. Na segunda edição, com o tema ‘Histórias de Resistência’, contámos com sete novos ‘livros’, entre 18 e 77 anos. As Bibliotecas Humanas resistem ao silêncio das histórias não contadas, transformando resistência em resiliência. Cada história cria uma ponte e novos caminhos para transformação, onde a compaixão e a empatia contrabalançam o julgamento e o preconceito, trazendo uma prática interna de resiliência. Foram experiências transformadoras pela intensidade com que livros e leitores as viveram, contando e escutando o que é mais verdadeiro e frágil no outro."
Bela deixa. A importância de escutar e valorizar as histórias que nos cercam.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990