Biblioteca Municipal Ferreira de Castro: “Nunca deixem de nos procurar”
É emocionante estar perante as folhas onde um escritor deixou a sua tinta, conhecimento, talento e esforço.
António Almeida, responsável técnico da Biblioteca Municipal Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, apresentou-se com um manifesto: "Nunca deixem de procurar as bibliotecas; estas têm serviços de cultura, informação, conhecimento e memória que deveriam acompanhar por toda a vida o cidadão, tal como o telemóvel!"
O apelo tem um contexto: "As pessoas ainda continuam a procurar a biblioteca como espaço de empréstimo literário, mas a sua permanência decresceu, fruto da pandemia. Volta a crescer na altura de exames, com a procura dos estudantes universitários para efetuarem o estudo necessário às matérias a estudar, mas lê-se pouco. Os desafios não são de agora, pois estamos num país que não tem hábitos de leitura e os desafios nessa área são imensos!."
Para os contornar, há estratégias. "Agora temos uma arma para os mais tecnológicos, os e-books, e tentamos ter sempre o nosso fundo documental atualizado e direcionado para o gosto dos utilizadores, promovendo atividades em que o livro seja o principal ator e que possa despertar a curiosidade dos mais resistentes, mostrando aos munícipes que somos uma casa viva que não servimos apenas intelectuais, mas sim toda a gente."
O decréscimo verificado na procura de famílias está, felizmente, a regredir. "As crianças são o nosso público mais assíduo na procura de leitura, assim como os seniores, que buscam leitura informal e documentos de interesse para uma leitura mais aprofundada, como romances. Também notamos muita procura pelo nosso fundo local, quer para pesquisa, quer por curiosidade."
Quando visitei a Biblioteca Municipal Ferreira de Castro cruzei-me com um grupo de cerca de uma dúzia de crianças entre três e cinco anos, fruto da parceria da biblioteca com os cinco agrupamentos de escolas do concelho. Sara Matos, professora de História, que trabalha na sala de leitura infantil/juvenil, falou-me daquilo que perceciona: "Alguns pais vêm à nossa biblioteca para tentar que os filhos leiam, e de várias faixas etárias, desde os mais pequenos como já na entrada da adolescência. Depois, há jovens que vêm fazer os trabalhos obrigatórios da escola. E aí o meu trabalho é uma espécie de trabalho de farmácia: eles vêm e perguntam onde estão os livros com determinado tema e eu, de acordo com os interesses deles, recomendo-lhes um livro. Depois, há muitos leitores jovens que vêm a usar o espaço para estudar ou simplesmente para esperar que os pais os venham buscar. E há casos especiais, como o do menino que vem todos os dias à biblioteca para ler. Num dia está com um livro na mão, no dia seguinte já está com outro. E já influenciou outros a fazer o mesmo. É um influencer, como se diz agora."
Na sala de leitura de adultos, encontrei Tiago Valente, que costuma vir para a biblioteca trabalhar: "Gosto de vir para aqui, é sossegado, e, por isso, mais produtivo." Sobre hábitos de leitura, confessa que gostaria de ler mais, mas ainda assim consegue ler, em média, um livro por mês. "Faço-o habitualmente na cama, antes de dormir." Conversámos sobre como os estímulos de um aparelho eletrónico são distintos dos de um livro e como isso pode influenciar o nosso sono. Logo a seguir, explorei a leitura sugerida por António Almeida: "Só podia ser um livro mais conhecido do nosso patrono, A Selva. Já leu?"
Por acaso não. Recordemos o autor: Ferreira de Castro foi um proeminente escritor português do século XX, conhecido pelas suas obras de caráter social e humanista. Nascido em 1898, em Oliveira de Azeméis, emigrou para o Brasil ainda jovem, mais precisamente para a Amazónia, onde viveu e trabalhou. Essa experiência da juventude inspirou o romance A Selva, publicado em 1930, que é um retrato vívido e crítico da vida dos trabalhadores nos seringais — áreas de cultivo de árvores do género Hevea, cuja seiva, conhecida como látex, é extraída para a produção de borracha.
A obra aborda temas como a exploração humana, as injustiças sociais e a relação do homem com a natureza. Através do protagonista, Alberto, o escritor descreve a dura realidade daqueles que buscam melhores condições de vida, capturando a essência da luta pela sobrevivência num ambiente hostil, o que resulta numa crítica contundente às desigualdades da época.
Sem desprimor por outras obras que li durante esta Road Trip Literária, A Selva foi uma das melhores descobertas — uma descoberta tardia, bem sei, tratando de um clássico (incontornável) da literatura portuguesa.
No texto inicial, "Pequena História de A Selva", o autor é claro nas suas intenções: "Pretendera realizar um livro de argumento muito simples, tão possível, tão natural que não se sentisse mesmo argumento. Um livro monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória, ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. A selva, os homens que nela viviam, o seu drama interdependente, uma plena autenticidade e nenhum efeito fácil. Era essa a minha ambição."
Neste excerto, encontramos bem explícita a selva-personagem de que Ferreira de Castro nos fala.
"— Mas a onça também é perigosa?
— Ui! Quando está com filharada ou anda no cio, com macho ao lado, se atira a um homem e o faz em pedaços, se ele não foge. Mas quando não está assim é ela que pega a correr, com medo de bala. Seu Alberto não ouviu ela gatinhar pela árvore acima quando nós chegámos? Não? Eu ouvi logo que a montaria tocou na restinga. Mas deixei-a para o fim... Às vezes é perigoso, porque ela salta, com medo, e vem cair em cima de quem está cá em baixo...
A fera arquejava, agora suavemente, e o branco das suas presas desaparecia sob o sangue em gorgolões. Encontrava-se estendida sobre um dos lados, com o olho esquerdo cheio de terra e o direito a embaciar-se, pouco a pouco. Firmino e Alberto retomaram a canoa, empreendendo o regresso. A mata começava a farfalhar com o vento que lhe crespava as franças mais altas. Uma grossa nuvem comera o Sol e a ela outras se vieram juntar para a marcha vagabunda. Lentamente perderam todos os seus contornos de palácios fantasiosos e o céu tornou-se pasta cinzenta, sem revérberos nem coloração alguma. A selva vestira-se de outra luz, luz baça e sufocante de antemanhã que se deteve na operação da nascença. O ar pesava e a brenha escurecia. Rumores que andavam longe, estoiravam agora sobre a cabeça, fazendo tremer tudo. E a água negra era constantemente riscada pelas serpentes de fogo que rabiavam no céu e ela reflectia. (…) Já não era triste litania que a selva agora entoava; um uivo forte, perene e agoirento, viera substituir, entre fustes e umbelas, a monótona cantilena. A brenha uivava, ramalhava, contorcia-se sob o vendaval que conduzia para longe a sua música épica e desesperada. Toda a terra se arrepiava, voavam milhões de folhas desprendidas e não havia na maranha um só ramo que não se agitasse. Estreitavam-se e tremiam as copas exuberantes, parecendo, no seu desgrenhamento, não presas mas correndo na mesma direcção do vento, com louca velocidade. Era um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados e cada vez também o regente mostrava frenesi maior. (…) E, de quando em quando, lá nas alturas, o bombo da orquestra infernal fazia-se ouvir com fragor. (…) Sob as rajadas, a selva cada vez arfava mais, rangia por toda a parte e dir-se-ia prestes a destruir-se a si mesma no imenso clamor. Era fantástica e alucinante no sinistro ulular, a que só punha pausa o estampido do trovão, abalando toda a terra."
No ocaso da minha visita, António mostrou-me o manuscrito de As Maravilhas Artísticas do Mundo, uma das mais importantes obras de Ferreira de Castro, que reúne uma vastíssima seleção de descrições detalhadas e reflexões sobre diversas obras de arte e monumentos emblemáticos ao redor do mundo. É emocionante estar perante as folhas onde um escritor deixou a sua tinta, conhecimento, talento e esforço.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990