Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira: o pátio da Judite
Um dos grandes aliciantes da biblioteca é a livraria do poeta Afonso Lopes Vieira, que nasceu em Leiria a 26 de janeiro de 1878, onde viveu a infância, tendo-se mudado para Lisboa já em idade escolar.
Ao entrar no átrio da Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria, o nosso olhar dirige-se imediatamente para a parede junto à escadaria que leva ao piso superior, onde estão expostas mais de 30 pinturas. No teto, vitrais coloridos conferem um toque artístico ao ambiente.
“Quando cheguei aqui à biblioteca, reparei que havia algumas obras de arte espalhadas de uma forma avulsa. E quando começámos a criar as exposições na Galeria de Arte, atirei o barro à parede, como se costuma dizer, e perguntei a alguns artistas se não queriam doar alguma obra ao município. Foi assim que começámos esta coleção de arte”, explica Victor Santos, diretor da Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira.
“O que aqui está é o resultado dessas doações, sendo que o nome dos artistas que doaram está num cartaz na parede, e outras obras que nós começámos a comprar de outros pintores mais conhecidos. A ideia é compor uma coleção de arte privada que poderá ir sempre sendo enriquecida, e que ficará para sempre para o município e para a biblioteca. Um dia, não caberá aqui e teremos de a estender para outras salas. Esta exposição é uma das propostas artísticas que temos e é mais um aliciante para as pessoas visitarem a biblioteca. Podem vir ler um livro, podem vir estudar, podem vir consultar documentos e investigar, e podem simplesmente vir apreciar uma pintura ou uma escultura”, acrescenta.
Um dos grandes aliciantes da biblioteca é a livraria do poeta Afonso Lopes Vieira, que nasceu em Leiria a 26 de janeiro de 1878, onde viveu a infância, tendo-se mudado para Lisboa já em idade escolar. Foi na capital que morreu a 25 de janeiro de 1946.
A doação da sua biblioteca privada motivou a abertura da Biblioteca Municipal de Leiria, em 1955. “O desejo de que essa doação fosse realizada foi expresso pelo próprio Afonso a sua mulher, Helena Aboim, e ao seu amigo Américo Cortez Pinto, que, após a sua morte, concretizaram a vontade do poeta. A biblioteca está disposta tal e qual como estava no Palácio da Rosa, a sua residência em Lisboa, até as estantes são as mesmas. Foram cortadas para ser transportadas, mas é tudo exatamente original”, esclarece o diretor.
O espaço é encantador e merecedor de uma visita por parte de quem aprecia bibliotecas, a obra do poeta ou simplesmente livros e salas bonitas. “Muitos destes livros eram de Xavier Rodrigues Cordeiro, o tio-avô de Afonso e que foi o seu mentor literário, digamos assim, que lhe foi dando alguns livros, criando-lhe o bichinho das letras. O Afonso Lopes Vieira deixou-nos muitos livros, um deles, do século XV, é o mais antigo documento que temos na biblioteca. Mas não está na estante, está guardado no depósito, por razões de conservação e segurança.”
Após expressar a sua imensa admiração por Afonso Lopes Vieira, o diretor da biblioteca sugeriu-me, sem surpresa, a leitura de uma obra do patrono da biblioteca: Onde a Terra se Acaba e Começa o Mar, o seu último livro, publicado em 1940.
O título da obra é inspirado no Canto III dos Lusíadas, que começa assim:
“Eis aqui, quase cume da cabeça
de Europa toda, o Reino Lusitano,
onde a terra se acaba e o mar começa (…)”
Esta é a homenagem do poeta de Leiria a Luís de Camões:
“Onde a terra se acaba e o mar começa / é Portugal; / simples pretexto para o litoral, / verde nau que ao mar largo se arremessa.
Onde a terra se acaba e o mar começa / a Estremadura está, / com o Verde pino que em glória floresça, / mosteiros, castelos, tanta pátria ali há!
Onde a terra se acaba e o mar começa / há uma casa onde amei, sonhei, sofri; / encheu-se-me de brancas a cabeça / e, debruçado para o mar, envelheci...
Onde a terra se acaba e o mar começa / é a bruma, a ilha que o Desejo tem; / e ouço nos búzios, té que o som esmoreça, / novas da minha pátria — além, além!”
O périplo pela biblioteca levou-nos a um pátio interior calcetado, onde há algumas laranjeiras, esculturas, bancos e uma varanda decorada com vasos de plantas. Um refúgio tranquilo no coração da cidade.
“Há três pátios aqui na biblioteca que são muito agradáveis de utilizar, sobretudo na primavera e no verão, em que as pessoas podem estar ao ar livre e num ambiente sossegado aqui no centro histórico da cidade. É muito importante ter as bibliotecas integradas no centro das cidades, porque há aqui uma comunhão entre as pessoas e a cidade, e as pessoas não têm de ir para fora. É cómodo. Para os mais pequeninos, é muito agradável, e os pais deixam aqui os filhos porque isto é tudo fechado e tem segurança, e eles ficam descansados. Nestes pátios, fazemos diversos espetáculos, musicais, de teatro; enfim, já realizámos muitas iniciativas ao ar livre nestes pátios”, continua Victor Santos.
— E este pátio interior onde estamos é dedicado a uma pessoa especial, não é?
— Sim, há aqui uma particularidade, este pátio chamava-se Pátio das Pirâmides. Entretanto, nós tínhamos uma colega que trabalhava aqui connosco, a dona Judite, que faleceu de cancro. Então, depois decidi que este espaço devia deixar de ser o Pátio das Pirâmides e passar a chamar-se Pátio da Judite. A ligação que todos nós tínhamos com ela era muito forte, e a presença dela era marcante para a Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira.
— Humanizar...
— Isso mesmo. Nós também temos de pensar um bocadinho nas pessoas e ter uma perspetiva diferente de que os colaboradores não valem apenas pelos cargos que ocupam, mas pela dinâmica que dão às instituições, pela sua importância e valor como pessoas, e no caso, uma muito boa pessoa, com valores e ética.
Coordenador da Unidade da Biblioteca Municipal desde 2022, Victor Santos tem ideias claras sobre a função que a instituição desempenha: “Mais do que uma biblioteca, o que temos aqui é um centro cultural que, na última década, também graças à requalificação das instalações e à atualização dos títulos disponíveis, passou a ter um papel relevante na comunidade. Para além da promoção da leitura, dos autores e dos livros, a biblioteca disponibiliza à comunidade uma agenda eclética com atividades para todos os públicos e diferentes interesses.”
A biblioteca municipal de Leiria organiza inúmeras atividades, algumas comuns a várias bibliotecas, outras específicas do contexto do concelho. Saliento aquelas que funcionam em parceria com entidades e instituições, como a Malharia (Encontro de Malhas), a Meditação na Biblioteca e o programa Janelas para o Mundo, em colaboração com o Estabelecimento Prisional de Leiria, que abrange jovens e presos preventivos. Além disso, a biblioteca promove o serviço de empréstimo de livros na Unidade de Internamento de Doentes de Evolução Prolongada de Psiquiatria (UIDEPP), nos Andrinos, e o projeto Conta-nos Histórias no Hospital, em parceria com o Centro Hospitalar de Leiria, destinado aos mais novos.
Iniciativas que refletem o espírito acolhedor e inclusivo que esta biblioteca procura promover. A propósito, retive este poema de Afonso Lopes Vieira:
“Felizes os vagabundos / do vasto mundo leve, os sem lar, / que de alma leve e olhos fundos / nunca podem parar.
Felizes os bem-parados / no profundo, / os sossegados no mundo, / os afogados do Fundo.”
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990