Biblioteca Municipal D. Miguel da Silva: De todos para todos
Para a infância e famílias, a biblioteca promove o “Ler e Crescer com a Biblioteca”, aos sábados. Existe ainda o programa “Aprender com a Biblioteca”, desenvolvido nas escolas do município.
Cerca de um mês antes do início da 2.ª edição da Road Trip Literária, recebi, pelo correio, o livro Sobreviventes – Um romance na Revolução de 1920, da autoria de Rogério Seabra Cardoso. Entusiasmo-me sempre que recebo um livro pelo correio, oriundo dos bibliotecários ou coordenadores das bibliotecas. Sou alheio à escolha, pelo que todos são uma surpresa. Li o prefácio, assinado por Pedro Hespanha, ainda junto à caixa do correio.
“Para quem entenda que a essência do romanesco é revelar os conflitos íntimos, traumas e obsessões (...), a estória dos amores desencontrados de Justino e Aninhas é muito mais do que o explorar das emoções e do perfil psicológico destas personagens. A narrativa utiliza esses detalhes como um pretexto para recordar o modo dramático como o país se libertou das instituições do antigo regime (...). Na verdade, os catorze anos que vão da revolução de 1820 até à vitória liberal de 1834 constituem um dos períodos mais conturbados da história portuguesa, pelas feridas profundas que causou na sociedade, dividindo famílias, rompendo amizades e espartilhando territórios. Sobreviventes mostra como o romance histórico também pode constituir uma espécie de arqueologia de passados vividos e servir de instrumentos de memória dos acontecimentos históricos que marcaram certas épocas e que ainda hoje nos apaixonam.”
Apaixonado pela condição humana e por todos os seus dramas, alegrias, contradições e sobrevivências, fiquei muito curioso e li o livro em dois dias. Apreciei a grande capacidade do autor de nos transportar para o contexto do século XIX em Portugal, revelando as amarguras vividas pela camada populacional mais pobre e vulnerável. Adiante, partilharei um excerto elucidativo. Por ora, dou a palavra a Anabela Rego, diretora da Biblioteca Municipal D. Miguel da Silva: “A escolha do livro de Rogério Seabra Cardoso, um visiense nascido na freguesia de Torredeita, deve-se ao facto de ser um escritor versátil e dedicado, que investiga muito e é assíduo na nossa biblioteca. O Rogério é médico, mas também se dedica à arte, à literatura e à história, já tendo publicado vários livros, todos diferentes. Um deles é um livro interessantíssimo sobre gatos, ilustrado por ele, onde as personagens são gatos que representam as dificuldades, tristezas e alegrias das pessoas. Contudo, o livro Sobreviventes é completamente diferente dos outros. É um livro histórico, baseado em documentação, mas com uma vertente de romance muito interessante.”
Eis um excerto:
“Nos começos de 1826, o pequeno José Justino completara o sétimo ano de vida, mas ainda não vislumbrara outro horizonte que não fosse o das pobres courelas (...), donde saía o alimento que, não poucas vezes, faltava na mesa. Para Carminda, de pouco valia o pagamento, irregular e faltoso, que a Câmara de Aveiro lhe mandava para a criação do menino. Compunha a dieta aquilo que Marcelino, marido da ama, trazia do mar ou da ria, furtado à vigilância dos patrões dos barcos. Depois, vinham os temporais e começava a fome. Mesmo em tempo adverso, a necessidade obrigava os pescadores a voltarem à faina. E lá saíam, remando a toda a força de braço, benzendo-se e vozeando à uma, para afastar o medo (...). Por isso, quando soube das obras da fábrica da Vista Alegre, não perdeu tempo a mudar o rumo dos braços, pois era trabalho certo e sem o risco de lavrar o mar. Carminda ficou sozinha no sustento da casa, onde a fome não demorou a entrar.
Apertada pela miséria, resolveu pôr-se a caminho da Vista Alegre, com o pequeno José Justino, na esperança de conseguir algum socorro do marido. Porém, Marcelino juntara os trapos com outra mulher de quem já esperava filho e recusou-se a qualquer ajuda. Carminda, inconformada, foi sentar-se na soleira da porta da casa onde ficavam os escritórios da fábrica e, agarrada ao rapazinho que alimentara durante sete anos, começou a chorar e a lamentar-se da pouca sorte (...). Atendeu-a o porteiro, pronto a enxotá-la. Carminda resistiu, protestou e começou a dizer que não ia embora daquela porta sem falar com alguém da Fábrica que desse ouvidos à sua desgraça, pois era ali que trabalhava seu marido, homem que lhe recusava sustento, por já o dar a uma vadia.
Justino, debruçado sobre os documentos que consultava, só dera pelo choro da Carminda quando ela alterou a voz no confronto com o porteiro. Não ficando indiferente, largou os papéis e foi indagar das razões do protesto.
– Deixa-me falar com esta mulher – disse Justino, afastando o porteiro.
– Que te falta para estares aqui a chorar dessa maneira – perguntou-lhe Justino.
– Oh! Meu senhor! É de comer!”
Após a análise do livro que representa a Biblioteca Municipal D. Miguel da Silva nesta Road Trip Literária, conversei com Anabela sobre as várias atividades da biblioteca.
Para o público adulto e sénior, que enfrenta o desafio de promoção da leitura e da participação cultural, destaca-se o programa “Avós a Ler”. Este programa é “direcionado a seniores e inclui atividades de leitura, escrita, ilustração e música, com o objetivo de manter os seniores ativos, promovendo a integração comunitária e combatendo o isolamento e a exclusão social”, explica a diretora. Outro projeto importante é “Livros às Segundas”, que é “um clube de leitura destinado a pessoas a partir dos 16 anos, que começou em fevereiro de 2024 e continua a atrair novos participantes em cada sessão”. Já o projeto “Fora de Portas no Estabelecimento Prisional” é descrito por Anabela Rego como “uma iniciativa comunitária que visa contribuir para a reinserção social de reclusos através de atividades de leitura e escrita, em colaboração com o Estabelecimento Prisional de Viseu. Este programa ajuda na aquisição de competências cognitivas, culturais e cívicas essenciais”.
Para a infância e famílias, a biblioteca promove a iniciativa “Ler e Crescer com a Biblioteca”, realizada aos sábados, em que é promovida “a leitura em família como forma de contribuição para o desenvolvimento cognitivo, emocional, afetivo e social das crianças, além de ser um importante momento de partilha entre pais e filhos”. Além disso, existe ainda o programa “Aprender com a Biblioteca”, desenvolvido nas escolas do município, com o objetivo de dinamizar a leitura, fomentar hábitos leitores e promover a inclusão social. Este programa também “fortalece a cooperação institucional com as escolas e bibliotecas escolares locais”, finaliza Anabela.
A confirmação do sucesso destas iniciativas está nos números que a responsável partilhou: de janeiro a setembro de 2024, foram realizadas 17 atividades para famílias aos sábados, que contaram com a participação de 793 crianças e 510 adultos; 39 atividades para escolas, com a participação de 1315 alunos do pré-escolar ao ensino secundário; e ainda 40 atividades nas interrupções letivas de Páscoa e verão, com a participação de 1415 crianças do pré-escolar e 1.º ciclo.
— Entre tantas atividades, não deve ser fácil escolher a mais marcante…
— Claro que não, mas posso destacar uma que foi memorável. No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, realizámos a exposição inédita ‘Livros Sem Censura’, na qual reunimos um conjunto de cem livros que foram proibidos pela censura do Estado Novo e que estiveram durante dois meses pendurados no átrio, salpicados de cravos. O interesse que suscitou nos visitantes e utilizadores deu origem ao pedido de empréstimo de muitos dos livros expostos e originou também duas sessões do Clube de Leitura da Biblioteca sobre o tema. Ouvimos de muitos visitantes histórias de vida relacionadas com alguns dos títulos proibidos e com outras atividades que eram censuradas durante o Estado Novo.
— Para finalizar, há algo que não quer mesmo deixar de partilhar?
— A Biblioteca Municipal de Viseu é um espaço de todos e para todos. Como diz a Mafalda, da banda desenhada criada por Quino, “não seria maravilhoso o mundo se as bibliotecas fossem mais importantes que os bancos?”.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990