O confronto geracional não nos conduz para o progresso democrático

A perpetuação de uma narrativa de confronto geracional não nos conduz para um melhor progresso democrático e impede a construção de pontes que unam a experiência do passado à criatividade do presente.

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Tornou-se comum ler ou escutar opiniões das gerações mais velhas com o mote “antigamente as coisas eram melhores”. Esta nostalgia forçada causa uma profunda mágoa às novas gerações, que, à partida, começam já pela derrota. Num artigo de opinião de Miguel Sousa Tavares no jornal Expresso desta semana, em que recorda Mário Soares paralelamente aos acontecimentos do mundo e Portugal contemporâneo, traça, num dos seus parágrafos, um perfil caricaturado das novas gerações: “(…) entram na universidade sem conseguir falar ou escrever em português decente (…). E saem de lá a caminho do mestrado, (…), sem nunca terem lido um livro (…). O mundo inteiro deles, (…) , está nas redes sociais, onde vegetam como amibas sem finalidade, a seguir os seus influencers e a postarem as mais imbecis banalidades, ficando depois na angústia de contarem os likes que receberam de volta. (…) os best-sellers de hoje são livros de meninas escritoras que ou discorrem como venceram um cancro da mama, ou como conseguiram calar os filhos durante uma hora, ou como sobreviveram dois meses sem redes sociais e com a ajuda de um psicólogo permanente. Sim, esta é a nova geração (…).”

Tudo isto me parece bastante redutor. Uma geração inteira num parágrafo com preconceitos generalizados. Ainda assim, com todos os entraves intelectuais apontados, as universidades portuguesas viram um aumento no seu número de alunos desde 1974 até 2023 de 56910 alunos para 446028 alunos. Relativamente à cultura literária, em 2023 venderam-se mais 7% de livros relativamente a 2022, apesar de o preço médio de livro vendido ter aumentado 3,3% (e, note-se, em média um português lê 5,6 livros ao ano).

É certo que alguns estudantes vivem, de facto, sem cultura literária, cinematográfica ou artística. Alguns de nós viemos de uma geração anterior que não teve estudos para assim cultivar os filhos. Uma classe operária que se matou a trabalhar para conseguir pôr os filhos a estudar numa universidade a 200 ou 300 quilómetros de casa sem que nunca tivessem tempo para ler Dostoiévski ou Tolstói e incutir isso nos seus descendentes e, como tal, não fomos educados culturalmente. Cada vez há mais estudantes a tornarem-se os primeiros licenciados na família — é um orgulho enorme para aqueles cujos pais nem o nome sabiam assinar, ver agora os filhos com um diploma, e emoldurar na parede da sala. A cultura intelectual de pessoas assim, eu inclusive, teve de começar do zero, por exemplo, a biblioteca pessoal começa numa estante vazia porque não havia livros para herdar.

Seria melhor que as gerações anteriores educassem e dialogassem mais do que aquilo que criticam — uma compreensão mútua, de parte a parte, podia ser um passo gigante para uma reestruturação do legado político português, desde Mário Soares aos demais políticos da sua geração, no entanto, este afastamento a frio entre o “antigamente” e “as novas gerações do TikTok” causa amargura e um fosso cada vez maior. Desprezar as redes sociais como antros de ignorantes a publicar imbecilidades abre espaço aos abutres extremistas que aproveitam as brechas para aí se imiscuírem, resultando na eleição de líderes mundiais através do X (ex-Twitter) e do TikTok.

O crescimento da desinformação política, social e cultural propaga-se nas redes sociais porque a intelectualidade se fechou nas suas torres de marfim olhando para baixo a achar que tudo aquilo não passava de uma moda passageira. A perpetuação de uma narrativa de confronto geracional não nos conduz para um melhor progresso democrático e impede a construção de pontes que unam a experiência do passado à criatividade do presente — é importante salientar que o futuro não se faz de memórias ou nostalgia poética, mas da construção do presente.

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