Yes, but… (ou como fiquei pendurada a 1300m de altitude)
Não raramente as coisas que vou escrevendo são dedilhadas com uns condimentos de ficção a temperar a realidade — mas será que existe alguma vez realidade sem ficção.
São seis da tarde e eu estou a mil e trezentos metros do solo, num bosque algures entre a fronteira da Bósnia e Montenegro, pendurada num cabo de aço que se estende sobre o desfiladeiro do rio Tara, suspensa por aquilo que só sei descrever como uma fralda gigante: um sistema bastante rudimentar de arneses, fibra e mosquetões, que me seguram a vida pelas virilhas. Isto não é ficção. O ano é 2019, num mundo pré-pandémico, e o meu corpo ligeiramente mais jovem do que o atual, mas não mais portador de sensatez, ficou “entalado” a meio do cabo como uma meia pendurada no estendal — basta uma rajada de vento e lá se vai a meia…
Os meus olhos percorrem a visão do rio lá em baixo, onde turistas em miniatura gritam animados dentro de barquinhos de borracha, debaixo dos meus pés que balançam. Aperto o telemóvel com a mesma força que há pessoas que se agarram aos bancos dos aviões em momentos de turbulência: só para dar a sensação de que se cair pelo menos estou agarrada a alguma coisa… Não tenho capacete. Não me serviria de grande coisa, de resto, tendo em conta os mil trezentos metros de altitude que me separam da superfície do rio. Procuro ficar o mais estável possível enquanto refaço os últimos minutos do meu dia na minha cabeça, e a sequência de ações que me trouxeram até este momento...
As placas num inglês básico prometiam um momento único de adrenalina, arrebatamento estético e pura diversão. Os cartazes mostravam aventureiros de várias idades e nacionalidades a deslizar antes de mim — toda uma ascendência de clientes satisfeitos por sentir o prazer de mergulhar no abismo, ao usufruírem daquele que prometia ser o Maior Slide da Europa! O pagamento era analógico, feito em marco bósnio-herzegovino: não se aceitava multibanco, que as emoções fortes se pagam em dinheiro vivo, e numa moeda insegura na cotação da bolsa de valores. O pico da montanha exibia fotografias que garantiam que, do outro lado do desfiladeiro, jovens bálticos encorpados recebiam os clientes com os seus braços volumosos e acolhedores, amortecendo a aterragem.
Eu tinha visto vários turistas, antes de mim, a serem lançados no cabo e deslizarem suavemente até desaparecerem no horizonte, a perder de vista, para chegarem sãos e salvos ao outro lado. No cume da montanha, antes de ser lançada, não fui informada de mais nada. Não me foi dada nenhuma indicação, ninguém me disse como proceder, não me foram facultadas instruções. A minha descida foi apenas precedida de um breve:
— Ready?
— Yes… But…
Não estava “ready”, ainda tinha uma questão, um “espera aí …”, uma indecisãozinha que precisava de ser esclarecida, um medozinho-de-cair-de-mil-trezentos-metros-de altura-sem-paraquedas-nem-colchão-amortecedor-da-queda, uma dúvida acerca da aterragem, um dilema existencial, e uma incerteza real sobre o que me esperava do outro lado do fio... Um “Yes, but”. Mas subitamente, antes que tivesse tempo de concluir a frase… ZUAH!!! Fui empurrada pelo funcionário, sem meias-medidas nem tempo para perguntas, nem para recuos ou arrependimentos! Ficou o “but…” a pairar no ar enquanto o meu corpo deslizava a toda a velocidade em queda livre, com as reticências ainda coladas ao céu da boca, diante daquilo que será o mais próximo da visão que os Deuses têm da Terra: o sublime rosto das montanhas salpicados por árvores majestosas, o longo curso do rio imenso, intemporal, a almofada quase tangível de nuvens.
Quando estava prestes a chegar à outra margem, vi lá ao fundo, um dos prometidos jovens bósnios em terra, qual cowboy, a atirar-me uma corda pelo ar. “O que faço agora?” — pensei. “É suposto agarrar? Abro os braços? Deixo a corda agarrar-se à fralda gigante? É magnético? É automático? É tecnologia de ponta? É comigo? É com eles?” Várias indecisões atravessaram a minha cabeça e as minhas mãos durante uns breves segundos de perplexidade, e… Não agarrei a corda. Achei que tinha íman, ou uma modernice qualquer. Não imaginei que a minha saída do Maior Slide da Europa dependesse de um golpe de western improvisado, da minha capacidade para agarrar uma corda bamba em altura qual truque de circo.
Foi quando comecei a sentir o meu corpo a deslizar para trás puxado pela força da gravidade, para ficar a baloiçar no meio do desfiladeiro, mediante do rosto perplexo do cowboy lá em baixo, que percebi que devia ter agarrado a corda.
Não raramente as coisas que vou escrevendo são dedilhadas com uns condimentos de ficção a temperar a realidade — mas será que existe alguma vez realidade sem ficção, quando somos tão nós dentro de nós mesmos, tão realizadores da nossa própria história que vamos editando com o que pensamos e sentimos? Mas a verdade é que lá estava eu, pendurada no erro da minha indecisão, da minha incompreensão, nos Balcãs, enquanto escutava o anúncio nos altifalantes, num inglês cheio de interferências, que iam ter de suspender o Slide, porque uma pessoa estava presa no meio da linha. Essa pessoa fui eu.
Fiquei uns bons oito minutos que pareceram oitenta anos pendurada, sem chão, sozinha, no que me pareceu ser o maior fosso possível entre mim e a minha impreparação para a realidade.
Considerei as várias hipóteses falhadas do meu resgate. Imaginei os meus pais em Portugal a receberem uma chamada da Força Aérea da Bósnia:
ꟷ Sinhor… Vossa filha pendurada num parque de diversões. Nós tentar tirá-la. De helicóptero. Mas ela estar esborrachada num calhau dos Balcãs porque ser muito naba!
Fui retirada ao fim de uma longa espera carregada de pânico, por um dos trabalhadores do parque com cara de pouquíssimos-amigos que trepou agarrado ao cabo na minha direção, numa espécie de rappel invertido e visivelmente penoso. Podia ter sido um momento James Bond. Podia ter sido sexy e cinematográfico, se não fosse tão tremido, tão periclitante, tão aparentemente improvisado, e se eu não estivesse roxa de tanto suster a respiração, e a suar em bica porque achei que era o meu último momento. Quando senti que tinha posto os pés trémulos em terra firme, corri precipitada para a saída.
A este episódio seguiu-se a pandemia, e à escala global uma impressão de sermos largados na vertigem, sem mãos firmes maiores para nos agarrar. E as sensações de uma solidão e impotência absolutas perante o desconhecido, o abismo, a incompreensão, desejando apenas que algo nos resgatasse para chegarmos sãos e salvos ao outro lado. E certamente alguns argumentarão que a pandemia foi uma ficção, tal como a aterragem lunar, a esfericidade da Terra, ou a poupa do Elvis….
Mas a verdade é que depois da interrupção, da interferência, se seguiu um abrupto regresso à normalidade, de empurrão, sem meias medidas, sem tempo para pensarmos muito no que ficou para trás, nesse estranho episódio radical em estivemos tão distantes do mundo, num fosso a perder de vista, cheios de medo de nos tocarmos, de nos beijarmos, de vivermos. Tal como o incidente do slide no rio Tara, às vezes penso que a pandemia aconteceu como um episódio de um sonho, de uma alucinação. Mas ainda me pergunto o que ficou desses momentos guardado no meu corpo…. Desse arrepio na espinha, desse pânico que paralisa, dessa interrupção sobre o precipício, da incerteza do desfecho.
E penso muitas vezes no desfiladeiro, como essa metáfora rudimentar, mas que me prende — como aqueles arneses — à ideia de que somos lançados sem explicação, e tantas outras vezes nos atiramos com bravura, para a insensatez caótica e desordenada da Vida. Sem instruções, nem árbitro, nem juiz nem receita, para nos dizer o que é certo ou errado. Sem tradução nem tempo para perceber o que vem aí. Só precipício. Sem nada que nos diga se devemos segurar ou largar, soltar ou confiar, libertar ou agarrar. A lançarmo-nos, às vezes afoitos, às vezes nabos, para o desconhecido — se tivermos coragem de o experimentar.
Ainda não voltei à Bósnia, nem a Montenegro… Talvez um dia. Mas guardo a visão do rio Tara com o azul mais intenso que vi, debaixo dos meus pés.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990