Se há quem ande sempre com a cabeça na Lua, Gaspar anda sempre com a Lua na cabeça. Teme-a e desconfia das suas fases, “ora brilha redondíssima, a conspirar maldades, ora esboça um sorriso de luz, minguante e fininho tal uma faca”.
Que dizer então do poder que tem sobre o mar, o seu “cavalo amestrado”, como lhe chama o rapaz. “É ela, sim, que lhe puxa as rédeas e fá-lo, por vezes, andar a trote, muito manso e liso, como um pano engomado, outras vezes num galope desenfreado, crespo e revolto, a relinchar e a espumar, em remoinho.”
Num apelo à “palavrodiversidade” e a um mundo mais luminoso, Rita Taborda Duarte cria uma história em que não tem medo de usar “palavras difíceis”, como muitos dos adultos que escrevem para crianças e jovens. “Quanto mais pobre for a nossa língua, mais pobre será o nosso mundo”, disse a escritora na apresentação do livro no encontro Braga em Risco. E acrescentou: “As palavras criam mundo. Enriquecem-nos.”
Ainda assim, para ajudar na leitura e descodificação das mais estranhas ao pequeno leitor, recorreu a um sinal gráfico (lua em quarto minguante) que assinala palavras e expressões como “fuinha”, “escalavrado” ou “não é boa rês”, “não era flor que se cheirasse”, entre outras. Critério que se define no início do livro: “Assinalei, neste livro, algumas palavras e expressões e maneiras de falar um bocadinho mais esquisitas e que te podem causar espanto e admiração.” Tudo a bem da palavrodiversidade.
Até inventou alguns adjectivos, como “traiçoosa”, “mentireira”, “aldrabida” e “fingidona”, e verbos, “emagrar” e “engordecer”.
“Esmagados por excesso de realidade”
Como é que se ilustra isto?, quisemos saber junto de Sebastião Peixoto, alguém que passou “muito tempo na Lua”, e que também em Braga, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, disse: “Sem imaginação, somos esmagados por excesso de realidade, que está cada vez mais feia.”
Já numa mensagem enviada apenas ao PÚBLICO recordou o processo: “Apesar da riqueza metafórica do texto, optei por não o sobrecarregar com muitas ilustrações, evitando distracções que pudessem interferir com a leitura.”
Para o ilustrador natural de Braga (1972) e licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes do Porto, decidir o que ilustrar num texto é sempre um desafio. “Muitas vezes, esse processo ocorre de forma intuitiva, não como uma busca consciente, mas como um encontro natural com o que o texto sugere.”
Aqui, o ambiente lunar permeava toda a narrativa e “pedia o uso de tonalidades escuras para realçar a Lua e reforçar o clima de mistério”. Assim, “uma paleta sóbria e reduzida contribuiu para criar uma atmosfera onírica, situando o leitor na dimensão de sonho e fantasia que envolve o Gaspar”. Perfeito.
O ilustrador freelancer, muito premiado e colaborador de várias editoras nacionais e estrangeiras, diz ter tido total liberdade para criar as ilustrações, “houve apenas uma conversa inicial com a Rita sobre a caracterização do Gaspar”.
Nessa troca de ideias, chegaram à conclusão de que ele não deveria ter traços físicos definidos, mas sim “ser uma figura ambígua, permitindo que a sua presença fosse mais uma expressão do universo da história do que de uma pessoa específica”.
No livro, Gaspar há-de acreditar no papel das estrelas e pirilampos “para lançarem os seus brilhos cintilantes sobre nós”. O mundo tornar-se-á mais luminoso e claro.
Pelo meio, há uma invocação certeira e comovente de António Aleixo, poeta popular que pensa com o coração pelo povo inteiro: “Talvez paz no mundo houvesse/ Embora tal não pareça,/ Se o coração não estivesse/ Tão distante da cabeça.”
Rita Taborda Duarte, que se diz “uma escritora (um bocado) infantil”, gostou de ver o seu texto transformado em imagens por Sebastião Peixoto, e lembra que “as crianças vêem para além do óbvio e são mais inteligentes” do que os adultos. “O mundo inaugural é acrescentado”, não duvida. “Sentam-se num sofá e navegam como se estivessem num barco.” Uma das crianças que assistiram à apresentação em Braga concordou, entusiasmada: “Eu faço isso.” Muitos de nós já não.