A felicidade de um país que se “abrilou”
Rita Taborda Duarte lembra “a prisão a céu aberto” que era Portugal antes da revolução. E cria o verbo “abrilar”, que significa “quando um país inteiro floresce na Primavera”.
Assim começa o livro Sempre!: “Era um país infeliz dividido entre o mar e a guerra, entre a bondade e a bruma. Queria-se um país futuro onde fosse a vida possível, mas a cada passo dado regressava-se ao passado. Em suma, nesse tal país, o dia parecia ser noite, ainda que despontasse a manhã. Ao hoje seguia-se o ontem: nunca mais chegava amanhã.”
Integrado na colecção de 12 livros com edição da Assembleia da República para assinalar os 50 anos do 25 de Abril e que junta “os pincéis às letras e as cores às leis”, Rita Taborda Duarte põe os mais novos a ter contacto com uma menina que nasceu longe do pai, que estava preso em Peniche, e que apenas a pôde ver pela primeira vez através de “um vidro baço e grosso que nem por nada se quebrava”.
Foi preso pela PIDE, aqui com a sigla descodificada como “Polícia Incrivelmente Destituída e Estúpida”, em vez da designação oficial Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
Dedica o livro ao pai, Mário de Carvalho, e à mãe, Maria Helena Taborda Duarte, e conta ao PÚBLICO, via email: “Sou pouco mais velha que Abril (nasci a 26 de Abril de 1973), mas a sua memória (histórica e familiar e, por isso mesmo, pessoal, mesmo que não seja memória directa) está muito enraizada em mim.”
No entanto, acrescenta, “a perspectiva de escrever este livro não me encheu de alegria, mas de uma forte angústia (muitos livros incríveis foram já escritos sobre Abril. João Pedro Mésseder, Manuel António Pina, Matilde Rosa Araújo, etc., de tantas e maravilhosas maneiras e outros que continuam ainda a sair: nunca serão demais)”.
Chegou a pensar que preferiria não o escrever, mas acabou por fazê-lo. “Sinto este um livro como um exercício cívico activo de perpetuar a democracia, que está para além do voto. Também por isso senti de uma forma tão forte o peso da responsabilidade”, diz.
Faz questão de sublinhar: “Sara Ludovico é o nome deste projecto [Missão: Democracia] a que há que agradecer: por aqui, recentra-se o verdadeiro trabalho da Assembleia da República, depois de Abril, a democracia, a aprendizagem e o acesso à cultura para todos.”
A autora, vencedora neste ano do Prémio Fundação Inês de Castro com Não Desfazendo, conta que tentou camuflar “a história do país com uma história pessoal, que é feita por interposta memória”. E revela: “Os meus pais, quando se deu o 25 de Abril, estavam exilados na Suécia; a história do país cruza-se com a minha história, com a dos meus pais exilados (como hoje tantos refugiados que vemos agora chegar à Europa, a Portugal, fugindo da guerra, das perseguições).”
Poemas e personagens escondidas
Pelo meio da narrativa, os adultos irão identificar frases memoráveis relacionadas com a revolução, vindas de poemas, canções. “Há uma história que se conta e uma história que se canta, aqui, simultaneamente. E nesse sentido este livro é colectivo: é meu (também de todos que conceberam e montaram este projecto), mas porque é principalmente de todos os escritores, cantores cantautores que trauteiam e cantam e declamam literalmente, até naturalmente, Abril nas entrelinhas das minhas palavras.”
No final, revelam-se as fontes das frases “roubadas” aos poemas e canções que se encontram ao longo do livro e registadas em itálico. As crianças são até convidadas a descobri-las: “Nas entrelinhas desta história, há uma alegria escondida, em poemas e canções que ninguém consegue calar. Vai, pois, à cata deles; vê se os consegues cantar.”
Há mais segredos nesta obra, como a Lígia. “Uma personagem escondida e que a cumplicidade da Madalena Matoso fez habitar mesmo que não se veja. Não entra na história, mas está lá, nas entrelinhas: Lígia era o carro com matrícula LG-72-45 que vigiava o meu pai.”
Muitos dos “farrapos” herdados da memória da família não entram no livro. Mas fez questão de recuperar duas palavras: “Recupero e invento (gosto de neologismos; as palavras são poucas para conter toda a complexidade do mundo) e no livro servem de bitola a Sempre! Encravar e abrilar.”
A fechar o livro, nas páginas didácticas/explicativas, escreve: “Se nem Roma nem Pavia se fizeram num só dia, também o 25 de Abril não viu a sua vida acabada só naquela madrugada. Há muito, cada vez mais por encravar, muito por abrilar, muitas portas por abrir.” E é esse o repto que é lançado a crianças e adultos no final.
Desenhar o “antes” e o “depois”
A ilustradora deste título, Madalena Matoso, faz-nos saber do gosto e responsabilidade de ter participado na colecção. “Quando vemos os livros todos juntos, percebemos como, a partir daqueles ‘grandes’ temas, os autores dos textos e das ilustrações criaram livros com registos muito diferentes entre si. E essa diversidade dá uma identidade muito especial a esta colecção.”
Explica como a curadora, Dora Batalim SottoMayor, “distribuiu os temas por pares de pessoas que nunca tinham trabalhado juntas, ou por pessoas que fazem o texto e a ilustração”. Resultado: “Temos livros que partem de histórias autobiográficas, banda desenhada, álbum ilustrado, ficção científica, histórias do quotidiano, histórias com adultos, com crianças, livros de não-ficção, textos poéticos, textos informativos…” Agrada-lhe.
No caso concreto de Sempre!, diz: “Nunca tinha feito um livro sobre o 25 de Abril (há muitos e bons) e nunca tinha ilustrado um livro da Rita Taborda Duarte. Fiquei contente e com a noção de que era uma grande responsabilidade.”
A autora do texto disse-lhe que tinha uma história pessoal relacionada com o tema e queria saber se faria ou não sentido contá-la. “Gostei muito que tivesse decidido escrever sobre ela. A história conta um episódio (feio e bonito) da vida dela e da sua família, mas que é muito mais do que uma história de família. Acaba por ser simbólica e universal, relaciona-se com todos nós.”
Quanto ao processo, não diferiu do habitual: “Ler o texto vezes sem conta até quase o saber de cor, fazer experiências, fazer um story board, apresentar, desenvolver as ilustrações, discutir, rever, ter em conta o conjunto, pôr coisas de lado. etc.” Mas, no texto, marcou-a especialmente “a ideia do ‘antes’ e ‘depois’”. Assim, muitas das imagens andam à volta dessa ideia, desse contraste. Quanto à técnica, diz, “usei marcadores e guache”.
Na contracapa, Rita Taborda Duarte conclui: “Era uma vez uma menina que nasceu numa época de relógios parados, mas todos sabemos que nada nem ninguém pode parar o tempo.” E o amanhã chegou.