Luís Montenegro (LM) anunciou na abertura da Web Summit que o Governo vai lançar um large language model (LLM) em português, no primeiro trimestre de 2025. Fê-lo com pompa e circunstância, como se o LLM fosse o salvador da pátria, o sucessor tecnológico de um sebastianismo bacoco. Mas muitas questões ficaram por responder.
O ChatGPT (e outros) já funcionam em português. O que vai este trazer de novo? Como vai “preservar a cultura e identidade” portuguesas? Quanto vai custar? Que dados serão usados? E os recursos necessários: sabem ao menos o que implica? Sem contexto ou informação adicional, parece apenas que LM quer entrar na moda dos LLM sem entender como funcionam.
Mais grave foi o que o primeiro-ministro disse sobre ciência: “[Portugal é] um país que quer passar a ciência e o conhecimento para o mercado, para a vida das pessoas com celeridade e escala. Speed and scale are keywords.” Esta visão revela uma profunda falta de noção sobre o propósito da ciência. A ciência não tem um modo turbo. Para alcançar essa simbiose com a sociedade, não se podem saltar passos. Não se pode pôr a carroça à frente dos bois. You cannot put the wagon in front of the oxen, Mr. Prime Minister. Antes de se “passar para o mercado”, é preciso fomentar e financiar a criação de ciência e conhecimento de qualidade, de uma forma sustentada.
Dir-me-ão: “Mas mencionou políticas de estímulo à ciência e à inovação no seu discurso.” Pois bem, quais? Se eu, do meio, não as conheço, ou se falhou na comunicação “célere” das mesmas, ou estas são inexistentes. Que se saiba, a última notícia foi sobre cortes nos fundos da FCT, não aumentos.
E depois há esta palavra, “inovação”. Eu adoro inovação, mas o problema é o seu significado subentendido no discurso e o entendimento do PM sobre o tema. Inovação surge a jusante da ciência, não a montante. Não se investe directamente em inovação; investe-se em ciência, que, se bem feita, a seu tempo traz inovação. A ciência não é utilitária; tem valor em si. Espírito crítico, curiosidade, veracidade, reprodutibilidade — tudo isto são valências que a ciência nos traz. Negá-las ou ignorá-las contribui para a crescente onda de negacionismo científico.
É importante modernizar o tecido empresarial, concordo. Mas para isso precisamos de criar condições para ciência e conhecimento de qualidade. Só assim alcançaremos inovações tecnológicas a longo prazo. Inovação não é um botão de on/off. E isso não passa necessariamente por promover investigação apenas em ciências aplicadas nem em redireccionar investigadores para empresas. A investigação em ciência fundamental e feita em universidades continua a ser igualmente importante.
Este discurso utilitário vindo de uma figura central é extremamente danoso, reforçando a ideia de que ciência só vale pelo que produz no imediato. É um discurso que contribui “em grande escala” para a manutenção e propagação dessa mentalidade.
Gostava que o primeiro-ministro dissesse: “Educação e Ciência, prioridade número um. No questions asked.” Que os cientistas não tivessem de andar a contar migalhas. Que se quebrasse o ciclo de desinvestimento e não se caísse sempre na mesma armadilha. Que se promovesse uma cultura de ciência, para a ciência e pela ciência. Que se envolvessem jovens e crianças e que se apaixonassem por ciência. Só assim, e a seu tempo, alcançaremos a transição “célere e escalável” que tanto almeja. Mas isso exige vontade e coragem políticas. A mudança está nas suas mãos, Sr. Primeiro-Ministro. Vamos a isso? Let's do it.