Gisèle Pelicot, a cara da coragem

Numa altura em que, um pouco por todo o lado, a igualdade de género parece estar em regressão, o rosto de Gisèle Pelicot não pode ser esquecido.

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As palavras serão sempre curtas para descrever a coragem de Gisèle Pelicot. Não haverá muitos casos em que alguém que foi sujeita ao opróbrio a que ela foi submetida tenha tido a capacidade de tornar a sua desgraça num exemplo tão claro de afirmação de força, conseguindo remeter os seus algozes ao lugar de miséria moral a que pertencem.

Gisèle Pelicot não estava talhada para nada disto. Não era alguém conhecido, habituado à exposição mediática, como aconteceu com algumas das figuras do movimento #metoo. Era simplesmente uma mulher, mãe e avó que esperava viver sossegadamente a sua reforma num local bucólico.

Quando os crimes do seu marido e das dezenas dos seus cúmplices se tornaram públicos, ela poderia ter-se refugiado no silêncio e na vergonha, a que normalmente se remetem as vítimas de violação. Mas ela, que fora transformada em objecto passivo nas centenas de violações que sofreu durante uma década, achou que era momento, como definiu um dos seus advogados, de fazer a “vergonha mudar de lugar”. Optou por um julgamento aberto ao público e nunca se arrependeu da sua decisão, tal como afirmou à saída do tribunal.

A sua atitude é um exemplo de afirmação de força das vítimas e remissão da culpa para quem, ao contrário do que acontece tantas vezes em casos de abuso sexual, deve ser o sujeito ao castigo. O tribunal deu-lhe toda a razão, como não poderia deixar de acontecer, perante um caso tão claro.

A bravura desta mulher anónima motivou o justo destaque, mas o seu caso também chocou o mundo porque arrasa o mito do “monstro violador”, com que se mascara a normalidade de tantos comportamentos machistas e violentos sobre as mulheres. O seu marido e os seus cúmplices eram normais cidadãos, bem-comportados, respeitados pelas suas famílias. Mas nenhum deles, tal como ela sublinhou, foi capaz de pegar no telefone e chamar a polícia.

Com justiça, a sua cara é hoje o exemplo da coragem, mostrada em revistas e jornais de todo o mundo, em cartazes de protesto por toda a França; um importante símbolo da luta das mulheres e de como pessoas normais se podem, pelas suas escolhas, transformar em poderosos agentes de mudança.

Numa altura em que, um pouco por todo o lado, a igualdade de género parece estar em regressão, quando nos preparamos para ver à frente dos destinos da nação mais poderosa do mundo alguém que foi condenado por abuso sexual, o rosto de Gisèle Pelicot não pode ser esquecido.

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