Os 80 anos de Laura, o chique noir que eternizou Gene Tierney

Pode dizer-se que, se não fosse um filme a preto e branco, ninguém diria que já é tão velho, pois nada nele envelheceu.

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O noir é um dos géneros mais apreciados pelos cinéfilos e o prolífico ano de 1944 deixou-nos seis grandes clássicos desse tipo: Pagos a Dobrar, Meia Luz, Enigma, Suprema Decisão, Ter ou Não Ter e Laura.

Depois de Pagos a Dobrar, Laura, de Otto Preminger, é o filme mais emblemático desta colheita e, por isso, merece ser aqui recordado já que esta sexta-feira é o seu 80.º aniversário. Pode dizer-se que, não fosse um filme a preto e branco, ninguém diria que já é tão velho, pois nada nele envelheceu. Mas a verdade é que por ser antigo é que Laura é tão bom. Trata-se de um filme sobre a obsessão de um polícia por uma mulher supostamente morta que ele nunca conheceu — Laura continua vibrante, inteligente, envolvente, sedutor e sensual, chique e um tanto ou quanto atordoante.

Quando termina a fanfarra e o logo da Twenty Century Fox, surgem os créditos inicias. A imagem de fundo é o mítico retrato da estonteantemente bela Gene Tierney, a protagonista. E a música que acompanha o momento é a romântica banda sonora composta de propósito para o filme, da autoria de David Raksin. O retrato na parede, a melodia, o nome “Laura”, tudo indica que este é um noir particularmente glamoroso.

Estamos diante de um dos noirs menos difíceis e complexos de seguir, sendo também um whodunnit sem grandes surpresas no seu desfecho. No entanto, tem uma das reviravoltas mais emblemáticas e perfeitas de Hollywood que não vou revelar para não estragar a surpresa de quem ainda não o viu. A narrativa é sólida (ainda que o argumento tenha algumas incoerências), tendo poucos momentos “mortos” e um ritmo que não decai. Os diálogos são inteligentes (Clifton Webb tem as melhores deixas) e a fotografia cuidada com alguns exemplos de chiaroscuro (Laura teve cinco indicações ao Óscar, ganhando pela Melhor Fotografia em Preto e Branco; o director de fotografia é Joseph LaShelle). Os famosos planos-sequência do realizador Otto Preminger não podiam faltar, reforçando a elegância visceral do próprio filme. Também se deve dar destaque ao requinte dos cenários: o filme passa-se quase sempre em apartamentos de luxo da velha Manhattan, capital do capitalismo.

As performances dos atores estão corretas e apreciáveis, mas quem rouba as cenas é Clifton Webb, homem de 55 anos que se tornou inesperadamente uma estrela graças a Laura. Está absolutamente fantástico interpretando um cínico jornalista e coleccionador de arte que gosta de arruinar carreiras. Também é mais ou menos óbvio que se trata de uma personagem homossexual e que a sua relação obsessiva com Laura não é de cariz erótico (ele tem Laura como uma Barbie que gosta de moldar: como já foi observado, ele quer ser Laura).

O subvalorizado e discreto Dana Andrews e a estupenda Judith Anderson estão mais que competentes nos seus papéis. Já Vincent Price é um ator que não adoro e devo reconhecer com certa infantilidade, que, em certos momentos, se torna bastante irritante. Mas falar de Laura é falar de Gene Tierney, de longe a atriz mais bela que a Fox teve alguma vez sob contrato e a quem deu grandes papéis em grandes filmes ao longo dos anos 1940. Laura catapultaria esta beleza de cabelo castanho e olhos verdes para o firmamento de Hollywood e a seguir a este filme viriam mais alguns sucessos, como o noir em tecnhicolor Amar foi a minha Perdição (1945), o drama O Fio da Navalha (1946) e a comédia dramática O Fantasma Apaixonado (1947). Depois destes filmes, Tierney não faria nada de muito mais interessante, com algumas excepções.

Eu tenho algumas dúvidas se Laura chega a ser mesmo uma obra-prima ou se é o carisma e beleza atordoante de Tierney que elevam o material a tal ponto, tal como acontece em Gilda (1946). Mas que é um grande filme e um dos mais amados de uma geração, é. Não é preciso fazer inquéritos para o saber. E sei que sobreviverá no tempo tal como o lendário retrato de Tierney na parede de um cenário dos estúdios Fox.

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