Doenças Crónicas. Como ajudar alguém que está num sofrimento extremo?

Parto da minha experiência pessoal, com a certeza de que algumas reflexões são comuns a todas as doenças. Pretendo apenas partilhar as minhas reflexões que talvez possam ajudar alguém.

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O sofrimento é de longe a maior escola de vida. Eckhart Tolle diz que Cristo se tornou no que se tornou por ser o arquétipo do sofrimento humano, e todos nos identificamos com o sofrimento, porque já todos sofremos e vimos sofrer, e diz ainda que não é por acaso que a cruz se tornou o símbolo do cristianismo, porque é a cruz que simboliza a dor que lhe foi infligida. Eckhart Tolle ainda acrescenta que o sofrimento é o ensinamento espiritual que todos temos, crentes ou não crentes, e que o devemos aceitar como se o tivéssemos escolhido. Também é interessante pensar que Buddha disse: “Eu ensino o sofrimento, para poder ensinar o fim do sofrimento.”

Mas a pessoa que mais me inspira neste mundo, Pepe Mujica, diz: “Acredito que o homem aprende muito mais na adversidade, sempre que não o destrua, do que na bonança. Nós aprendemos com o que vivemos, não com o que nos contam. E aprende-se mais com a dor do que com os triunfos”. Mas o que me leva a escrever este texto está ligado à frase “sempre que não o destrua”.

Eu tenho uma doença crónica, incurável, mal compreendida, que me tirou a capacidade de ser médico, que foi e é o maior sonho da minha vida, que me tirou a capacidade de socializar fora de casa, que resumidamente destruiu todos os sonhos da minha vida, me faz viver quase sempre deitado, e ainda me causa dor, 24 horas por dia, sem tirar fins-de-semana, férias ou feriados... O que fez com que eu perdesse a vontade de viver, e viva num sofrimento constante, o que, por sua vez, não sei como possa não contagiar as pessoas da minha vida, que sofrem horrores com o meu sofrimento.

Mesmo sendo médico e conseguindo chegar a todos os médicos que andam por aí, o máximo que eu consegui, após infinitas consultas, tratamentos e duas cirurgias, foi sair de uma fase de “quero morrer, já; aprovem a eutanásia, já!” para o “estou péssimo, absolutamente exausto de sofrer e não sei se vou aguentar assim muito mais tempo” e, com isto, não sei bem como me ajudar, nem sei como “ensinar” as pessoas a ajudar-me, com a certeza que o contacto humano é a única salvação. E estou a pensar nisto a toda a hora, porque não tenho muito mais para fazer, além do meu activismo humanitário pro bono, que se tornou na minha “profissão” a tempo inteiro, quando os dois ou três neurónios que ainda resistem no meu cérebro se sentem capazes de lutar com as palavras pela minha grande paixão: a humanidade.

Comparar desgraças muito graves é um exercício muito estúpido e injusto, aprendi isso quando me perguntavam vezes sem conta: “O que é pior, o Congo ou o Afeganistão?", "a Síria ou o Iraque?”, “Gaza ou Ucrânia?”. São tudo desgraças horríveis, compará-las é um exercício quase cruel, assim como é comparar doenças altamente incapacitantes, dolorosas e destrutivas das vidas das pessoas. E, por isso, parto da minha experiência pessoal, com a certeza de que algumas reflexões são comuns a todas estas doenças, mas sabendo que há sempre alguém pior do que eu, e eu não pretendo ser o dono da moral ou da razão, pretendo apenas partilhar as minhas reflexões que talvez possam ajudar alguém.

Família ou amigos dividem-se logo em 3 grupos: 1) os que desapareceram, que não querem saber; 2) os que acham que sabem de que é que eu preciso; 3) os que perguntam como é que me podem ajudar. Em relação ao 1), faço o meu melhor para perdoar, embora às vezes me apeteça pegar no telefone e insultá-los a todos; Os do grupo 2) não fazem ideia de quão errados estão, e não percebem a diferença entre intenção e impacto, e esses tento trazer para o grupo 3). Em relação aos do grupo 3), que têm claramente a atitude certa, tento explicar o que é que eu preciso, e são esses que me mantêm vivo.

Cada vez mais valorizo a inteligência emocional como a maior das inteligências. Tenho inúmeros exemplos bem próximos de pessoas extremamente inteligentes, intelectualmente, na quantidade de conhecimento que possuem, mas que têm a inteligência emocional de um tubérculo.

A maioria dos meus grandes amigos são homens, e os homens são particularmente ignorantes em termos de inteligência emocional. Quando me querem ajudar, convidam-me para beber uns copos, dizer umas palhaçadas, falar sobre raparigas bonitas ou sobre futebol. E isso, por vezes, é maravilhoso, mas não chega, nem de perto nem de longe, é preciso ir à profundidade das emoções, e os homens, na generalidade são muito incapazes de conseguir fazer isso. Não é por mal. É ignorância. Não sabem. E quem está a sofrer como eu e tantos outros, precisa que se vá descascando as camadas das emoções bem até ao fundo.

O contacto humano. Não há nada que substitua o contacto humano, que pode ser por mensagens, ou telefonemas, mas idealmente no cara a cara, e se possível com abraços daqueles que põem as costelas em risco.

A consistência. Por vezes, ganho coragem e peço ajuda, e aparecem muitos, e é incrível, mas depois passam-se semanas e semanas sem uma mensagem, sem um telefonema, e sem uma visita (excepto da minha mãe e irmã, e de mais um amigo e uma amiga que me mantêm vivo). Mas eu trocava 1000 vezes os momentos em que aparecem muitos pela a consistência de ter p.e. uma visita por semana. Porque eu preciso da mesma consistência de amor, carinho e amizade, que a minha doença tem comigo, em crueldade, ou seja, sempre. Sou um buraco sem fundo de carência de amor.

A incompreensão. A minha doença não se vê, e das coisas que mais me magoam é dizerem-me “estás com bom aspecto”. Nas muitas particularidades que a minha doença tem, eu consigo fazer alguns desportos que até me ajudam na dor e que me dão imenso prazer, mas não consigo estar sentado ou de pé parado uns 5 ou 10 minutos sem a minha dor se agravar horrores, e claro, as pessoas não compreendem isto, a ponto de acharem que é tudo psicológico, e isso “mata-me”. A incompreensão mata.

Os julgamentos “Ah… Está muito doente, mas está nas redes sociais ou a falar na televisão…”, entre outros julgamentos que eu até acredito que não sejam por mal, mas que no meu coração entram como facas de pura crueldade. Em vez de perceberem que é onde eu posso/consigo encontrar algum sentido para a vida, pessoas que me são muito próximas (não me estou a referir ao ódio das redes sociais) ainda me julgam com desdém pelo pouco que ainda consigo fazer e me dá algum prazer e significado de vida.

Dessensibilização com o tempo. Já usei esta comparação em conversas com a minha psicóloga: “É como na guerra da Ucrânia ou de Gaza… Nos primeiros dias ou semanas as pessoas revoltam-se, manifestam-se, rasgam as vestes, fazem juras de amor eterno… E depois, passado algum tempo, o sofrimento destes povos continua igual ou pior, mas a atenção da opinião pública desaparece”. E com uma doença crónica é igual, o sofrimento continua e o apoio desaparece, quando ele é mais preciso.

Rezar. Eu espero que os crentes me perdoem e respeitem o meu ateísmo, da mesma forma que eu respeito todas as religiões. Rezar não serve para nada. Rezar serve o próprio que reza, e ajuda o doente apenas se lhe disserem que estão a rezar por ele, porque ao dizerem, o amor chega ao doente.

Celebrem as pequenas vitórias. Desde que vivo deitado 90-95% do dia, e com dor 24 horas por dia, já escrevi dois livros e liderei a organização duma feira de voluntariado que juntou 114 ONG e teve uma afluência de 2000 pessoas. Várias das minhas pessoas me felicitaram, mas quase ninguém conseguiu dizer algo parecido com “Parabéns pelo que fizeste, apesar da tua doença e das tuas limitações.” Sendo que aqui a palavra-chave é o “apesar”, e seria tão importante ouvir isso.

É mesmo muito difícil aliviar o desespero de quem vive com uma doença crónica altamente incapacitante seja ela qual for, e apesar de o sofrimento ser o maior “ensinamento espiritual”, é preciso que o doente ultrapasse a fase do “sempre que não o destrua”. Eu ainda não ultrapassei essa fase.

Não desistam, sejam consistentes, esforcem-se por compreender, sem julgamentos, estejam presentes, e não assumam que sabem de que é que o doente precisa; perguntem “como é que eu posso ajudar?”, ouçam com atenção e estarão a salvar uma vida.

“Quem salva uma vida, é como se salvasse toda a humanidade” – provérbio árabe.

As crónicas de Gustavo Carona são a favor dos Médicos sem Fronteiras

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