Diretos por tudo e por nada

Abençoada rádio, que no meio disto tudo, ainda me parece gozar de alguma saúde. Porque o dever é informar e não exultar, acirrar, escancarar a dor e o sofrimento.

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Declarações aos jornalistas pelo comandante dos Bombeiros Sapadores do Porto, após um incêndio na Rua da Alegria, em Novembro de 2018 André Rodrigues/Arquivo
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Direto do incêndio, bem próximo das chamas, para se perceber que a floresta está mesmo a arder. Fogo dado como dominado, direto outra vez com o comandante dos Bombeiros Voluntários e o rescaldo. Fogo extinto, direto da chuva que já cai, copiosamente. Acabaram os incêndios, direto da reunião que não dá em nada, da qual nada se sabe. Orçamento vai ser aprovado ou não? Mais um direto. Não chegam os diretos para tanta informação. Afinal é a CMtv a sensacionalista? E as restantes televisões? A partir de que ponto é que as linhas editoriais que impunham barreiras, se esbateram? Os canais privados de televisão estão muito parecidos.

E quem está do lado de lá a manietar estes jornalistas em campo? Lá longe, sentados em Lisboa, a pedir que sigam de turno em turno, sem folgas, porque o fogo, esse não pode esperar. E que diferenças salariais? Entre quem orquestra tão mal, e quem anda no terreno a fazer o que se lhe pede? E em estúdio multiplicam-se os especialistas académicos, os políticos e comentadores, com teorias e planos para erradicar de vez esta catástrofe. Mas, os fogos parecem ser um acontecimento cíclico, assim como o mau jornalismo que o acompanha.

Como é que chegámos ao ponto de considerar aceitável, do ponto de vista ético e deontológico, a constante e indiscriminada cobertura de cerimónias fúnebres? É porque lá está o Presidente da República? Todo esse mediatismo só contribui para um show off, em momento de dor, totalmente desprezível. Coloco-me no lugar daqueles que, chorando os entes queridos, viram os seus rostos desfigurados nas telas, nas páginas dos jornais. Já os e as jornalistas, que se enviam para o terreno, deles e delas não querem saber os chefes/editores, nem das suas emoções ou se levam com uma descarga de água de um avião Canadair em cima. O importante é ir mais próximo, mais um pouco, junto do fogo e do fumo e que isso se perceba pelo ecrã.

Lembro-me em jovem que — quando sentada a estudar, ouvia a televisão e escutava: vamos agora para direto — erguia a cabeça para espreitar o que tinha acontecido de grave, o que de importante tinha exigido a deslocação de uma equipa para o terreno. Recordo as carrinhas de exteriores, das equipas técnicas que vinham de Lisboa ou do Porto e de toda aquela magia em fazer o direto acontecer. Hoje, com os aparelhos tecnológicos ‘teradek’ ou ‘live u’, o direto sucede a todo e qualquer instante, não com o objetivo de informar, mas de prender o espetador, “dando prioridade ao insólito, ao excecional e ao chocante”, como explica o investigador João Canavilhas. Quem decide, vê lucro de audiências em juntar informação e entretenimento, transmitindo em pano de fundo galas e o ruído subjacente, e onde tanto escutamos “tudo perfeito para uma grande noite”, como a seguir, “mas para já as negociações do orçamento”.

Querem ser os primeiros, querem estar lá, querem fuçar e expor… E, no dia a seguir, os títulos e leads repetem-se, porque todos seguiram como manada, procurando os mesmos prismas. No que ao fogo diz respeito, este tipo de cobertura jornalística massificadamente tabloide, não parece ter, à primeira vista, grandes consequências, mas se refletirmos e olharmos à forma como, por exemplo, André Ventura passou a abrir telejornais, de como se corre atrás dele e da sua primeira declaração bombástica, recorrendo até à sua figura para genéricos promocionais de programas informativos, talvez seja caso para dizer: depois não se queixem de terem preferido o espetáculo.

Abençoada rádio, que no meio disto tudo, ainda me parece gozar de alguma saúde. Porque o dever é informar e não exultar, acirrar, escancarar a dor e o sofrimento. Aliás, foi apenas na rádio que escutei as pertinentes declarações de Rita Figueiras, numa análise da comunicação política atual, refletindo sobre a estratégia de comunicação do governo que parece estar a ter resultado para proteção dos mesmos agentes políticos — fala-se pouco e por vezes até sem direito a perguntas nas conferências.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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