Uma bala de plástico, fogo e o veado de Frida Kahlo

Não sabia o que me estava a acontecer, nunca tinha tido um primeiro encontro tão desestabilizador.

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Lado a lado, ao balcão pegajoso de um bar gay, ofereceu-me uma bala de plástico. Cobre, brilhante, da cor de uma munição de verdade.

É preciso dizer que era a primeira vez que nos víamos. Depois de vários meses de conversa e sedução online, tínhamos finalmente marcado um encontro. Oferecer-me uma bala, embora surpreendente, não podia ser mais literal. A pessoa queria atingir-me. Embora de um modo bizarro, considerei que teve uma intenção romântica. Longe do romantismo novecentista ou da anemia do amor hipermoderno. Uma oferenda estranha: a representação de algo fatal, de plástico. Um objecto típico destes tempos. Não questionei.

Senti-o como um equivalente contemporâneo da seta que pode trespassar o corpo, imagens da pintura. Lembrei-me do Veado Ferido, de Frida Kahlo. Não auspiciava nada de bom. Falámos sobre literatura, Fotografia, e, à medida que os índices de alcoolemia foram subindo, fomos parar à pornografia e a Sasha Grey.

Não sabia o que me estava a acontecer, nunca tinha tido um primeiro encontro tão desestabilizador. Senti curiosidade por aquela pessoa e atracção física. E medo. Tinha medo dela. A forma doce e carnívora como falava baralhava-me a percepção. Sobrepunha-se ao receio, os seus lábios grossos, melífluos, uma romã que eu queria misturar com a vodca que percorria a minha corrente sanguínea.

Conversámos e rimos até a pista de dança ficar vazia. Perguntei-lhe se era preciso marcar uma data na agenda para nos beijarmos. Vi-lhe o olhar incerto por segundos, a adrenalina a subir, encostou-me então à parede do bar e beijou-me. Sôfrega e voraz, senti que me iria trespassar. Lá está, a bala. O meu corpo fervia. Tinha ouvido relatos de pessoas que tinham sido alvejadas. Todas diziam o mesmo: não se adivinha a dor no início, quando a bala entra no corpo apenas se sente um calor intenso e um formigueiro. Precisamente o que se passava comigo. Um calor intenso. Um formigueiro. Um fogo que me trespassava. Beijámo-nos durante algum tempo e depois cada uma seguiu para sua casa.

Nessa madrugada, deitada sozinha sobre a minha cama, toquei-me com a imagem da pintura de Frida bem presente. Um veado com a cara da autora, alvejado, ferido.


Este conto faz parte de uma série de contos de Verão, Rosa-Crucificação (título homónimo da trilogia de Henry Miller). Os contos serão sempre sobre Rosa, uma mulher de meia-idade no século XXI, à descoberta da sua sexualidade entre Lisboa e o Porto.

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