A poesia da minha mãe

Quando puxo para trás a fita do tempo, lá está a minha mãe a escrevinhar um poema num pedaço de papel qualquer. “Poesia de gente humilde”, menospreza-se ela.

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"[A minha mãe] tinha 11 anos quando começou a escrever poesia, procurando nela um escape, um alívio para a sua dura realidade" Nelson Marques
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Toxocara canis. Assim se chama o cabrão do parasita que me cegou o olho direito. Tinha 6 anos quando o descobriram. Por causa dele, estive quase a chumbar a primeira classe. Na escola, frustrava-me e irritava-me com facilidade. Rasgava as folhas onde tinha de fazer os exercícios, guardava os cadernos na mochila, recusava-me a ter aulas. A professora achou que eu não batia bem da tola e recomendou aos meus pais uma psicóloga. Lembro-me de fazer um puzzle com umas vaquinhas que estavam dentro de uma cerca e, no final, ouvir a psicóloga dizer que estava tudo bem comigo. Só deram com o okupa que se instalou no meu olho durante uma consulta de rotina na escola. Fui operado no Hospital de São António, no Porto, mas já pouco havia a fazer. Ainda hoje, se alguém diz que tenho olhos bonitos, sinto que o faz por bondade.

Após a operação, tive de usar uma pala. “És o Camões da família”, dizia-me a minha mãe. “Se se meterem contigo na escola, diz-lhes que vês melhor com a testa do que eles com os dois olhos”. Nunca quis que crescesse com complexos de inferioridade ou sentisse que o meu olho me limitava. Eu era como o Camões, o maior poeta português. Eis algo de que me podia orgulhar. Obrigado, mãe!

Não sei se foi a ideia da pala do Camões que me afastou da poesia. Nunca tive grande vocação para escrever em verso, por isso foi com grande surpresa que descobri, numa visita recente a casa dos meus pais, que venci um concurso de poesia no liceu quando tinha 12 ou 13 anos. Uma folha amarelada guarda a prova do feito. Título: “Crítica à evolução genética”, um manifesto contra os bebés proveta, algo que dificilmente eu assinaria, mesmo naquela idade. Depressa percebi que fui um impostor: a caligrafia usada no poema é demasiado legível para ser minha. Não espanta que não me lembre dele. Foi a minha mãe quem, vendo-me deserto de ideias, o escreveu. A memória guarda o que vale a pena, já dizia o Galeano.

Quando puxo para trás a fita do tempo, viajando até à minha infância, lá está a minha mãe a escrevinhar um poema num pedaço de papel qualquer, fosse o recibo das compras do supermercado ou a aba de uma caixa de cartão. “Poesia de gente humilde”, menospreza-se ela, sem perceber que há poucas coisas tão poéticas como alguém que escreve poemas em folhas guardadas dentro de um saco de plástico.

A minha mãe não teve uma vida fácil. A quarta de sete irmãos, sobreviveu a um pai violento, mineiro do Pejão, que “só por acaso” não matou ninguém de porrada lá em casa. Escreve ela em “Escrava da sorte”, onde evoca a memória da minha avó Maria:

Rebentos roubados, para longe jogados
Sem se puder dar aos filhos que amou
Sentimentos contidos, amordaçados
Escrava do homem que quase a matou.

(...)

Alívio da dor, escrava da sorte
Em tanta lágrima envolvida
Caída enfim, no sepulcro da morte
Paz de verdade, fim de vida.

Uma vez concluída a quarta classe, apesar de ser a melhor aluna da sua turma, a minha mãe cumpriu o destino que o meu avô lhe traçou: estava prometida a uma prima que tinha um supermercado no Porto. Ainda hoje lhe dói recordar esses tempos. Acordava às cinco da manhã, às vezes mais cedo, recebia os frangos que chegavam em jaulas e era ela, uma miúda de 10 anos, quem os tinha de matar e depenar. Trabalhava de sol a sol, chegava a adormecer de pé enquanto lavava a loiça. Desesperada, escreveu uma carta ao meu avô, procurando amolecer o seu coração de pedra:

Sinto que morro aqui. Não aguento mais matar os bichinhos. Antes quero que me bata todos os dias do que estar aqui.

Num fogacho de humanidade, o meu avô apanhou um autocarro em Castelo de Paiva e foi buscá-la. Ainda a entregou a outra prima que vivia no Porto, mas não suportou que ela a tratasse como uma filha e quisesse que estudasse para ser enfermeira. Fê-la regressar à terra, onde, até atingir a maioridade, aos 21 anos, foi escrava do trabalho e dos maus-tratos.

Tinha 11 anos quando começou a escrever poesia, procurando nela um escape, um alívio para a sua dura realidade. Destruiu muitos desses poemas porque a faziam reviver uma dor imensa. Todos os que sobreviveram foram escritos já depois de conhecer o meu pai. Há muitos anos, eu e os meus irmãos pegámos em vários desses poemas enfiados num saco de plástico e compilámo-los num livrinho que escrevemos à mão. Há neles muito de Florbela Espanca. A mesma dor, o mesmo desencanto, mas também o mesmo sonho de uma vida melhor. Mais feliz. Um “Sonho impossível”, julgava a minha mãe:

Eu queria ter uma casa debaixo do sol
Limpa, perfumada e bem arranjada
A gosto da prole.

Com flores à entrada
Cortinas aos folhos
Castelo de fada
Verdura aos molhos.

Eu queria ver meu amor chegar
Sem voltar a partir
E que se desse, como é desejado,
Ver meus rebentos sempre a sorrir
Acordando felizes no ninho amado.

E para conforto poder dar
Queria ter algo mais que pão
Tesouro perdido encontrar
De ouro ou prata, por que não?

(...)

E neste querer insatisfeito
Queria que a Terra parasse
E que tudo estivesse perfeito
Quando de novo girasse.

Escrevo para a minha mãe e por causa dela. Revejo-me nela, e na sua poesia, quando me dizem que rasgo o peito e me revelo, sem medo de julgamentos. Escrevo para que ela se cumpra. Para que tenha orgulho nela, não em mim. Porque não estaria aqui, a escrever nas páginas do PÚBLICO, se ela não tivesse percebido que eu já era jornalista antes de o ser. Se ela não me tivesse feito acreditar que, mesmo cego de um olho, podia ver mais longe. Chegar mais longe. Como ela, que fez do seu sonho impossível realidade.

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