Aqui na América
A sorte de Trump e o azar do Twitter
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
Ocorreu um erro. Por favor volta a tentar.
Subscreveu a newsletter Aqui na América. Veja as outras newsletters que temos para si.
Um dos problemas mais frequentes de quem tem de escrever com uma certa periodicidade é não ter assunto para tratar. Outro é o problema contrário, e é aquele com que me deparo nestas semanas pós-eleitorais nos Estados Unidos, com tantos temas para abordar. Permitam-me, por isso, uma passagem rápida por uma série deles.
Deixem-me só começar com uma nota mais agradável: que bom é poder viver um bocadinho de Portugal neste lado do Atlântico, nos Estados Unidos. No mês final da campanha eleitoral passei por Newark, em Nova Jérsia, e há dias voltei a Fall River, no Massachusetts. Comi bacalhau, chanfana e pastéis de nata, e voltei para a minha "base" americana no Vermont com queijos, queijadas, chouriços e vinho. Não é só a barriga que agradece, é mesmo a alma.
130 mil votos
Vamos agora a coisas menos saborosas. Quão retumbante foi o triunfo de Donald Trump nas presidenciais norte-americanas? Menos do que pareceu ter sido no dia 5, e do que eu próprio escrevi. Foi o que Onésimo Teotónio Almeida já tinha assinalado na semana passada no programa É Ou Não É, na RTP, e que me sublinhou entretanto por email, e que também tem sido realçado por outros observadores nos últimos dias.
Isto não é uma tentativa de fabricar uma espécie de vitória moral. Kamala Harris e os democratas perderam em toda a linha: no voto popular, no colégio eleitoral (e em todos os sete estados decisivos), no Senado e na Câmara dos Representantes. Mas por uma margem menor do que a anunciada inicialmente.
As muitas peculiaridades das eleições norte-americanas também incluem esta: são necessárias várias semanas para se contar a totalidade dos votos. A Califórnia, por exemplo, ainda tem centenas de milhares por contar, tantos que há vários congressistas por eleger. Não é caso único e há vários motivos: estados com procedimentos de contagem muito exigentes, a chegada tardia de votos por correspondência, ou pedidos de recontagem apresentados por candidatos ou partidos quando os resultados são tão próximos que obrigam ao afastamento de qualquer dúvida.
Com a contagem nacional ainda por concluir, Trump estava neste fim-de-semana marginalmente abaixo dos 50% de votos anunciados há duas semanas, notava o New York Times. Já ninguém lhe tira a vitória, até pode terminar acima dos 50%, e sempre serão uns milhões de votos, quase três milhões, mais que os de Harris. Mas entre os votos da Pensilvânia, do Wisconsin e do Michigan, que bastariam para determinar o vencedor no colégio eleitoral, a vantagem final de Trump sobre Harris deverá ficar apenas em cerca de 130 mil, como nota o jornalista e historiador Garrett M. Graff.
Perdido por um, perdido por mil, é certo. Uma goleada humilhante ou um mísero golo sofrido ao minuto 120 do prolongamento significam a mesma coisa no final de uma partida de futebol. Mas obrigam a diferentes tons na análise de uma derrota, e a diferentes graus de convicção nas nossas certezas absolutas.
Sorte, azar e mensagem
Graff escreve também sobre como "a história é frequentemente uma coisa renhida", determinada por este tipo de margens curtas, ou por pequenos grandes azares. Teria a I Guerra Mundial (e a II Guerra Mundial) acontecido se o motorista do arquiduque Francisco Fernando não se tivesse enganado no caminho em Sarajevo, parando o carro à frente de Gavrilo Princip? "E imaginem quão diferente o nosso mundo seria hoje se mais 538 pessoas tivessem votado em Al Gore na Florida nas eleições de 2000", desafia o jornalista.
Na rede social Bluesky (já lá vamos), o Nobel da Economia Paul Krugman também diz valorizar "o papel da pura sorte" na política: "Trump teria provavelmente ganho em 2020 se a covid tivesse esperado um ano para atacar. A América teve o Obamacare porque a crise financeira global atacou durante o mandato de Bush (...). Houve um aumento global da inflação quando a economia global reabriu após a pandemia; as políticas de Biden não tiveram muito a ver com isso, mas os incumbentes em todo o mundo pagaram o preço, incluindo os democratas na América."
Terá sido isso? Tiveram os democratas apenas azar ou mau timing, tal como Trump teve em 2020? Na semana passada centrei-me no diagnóstico crítico de Bernie Sanders sobre um progressivo afastamento dos democratas em relação às classes trabalhadoras, com custos eleitorais crescentes.
O nosso João Pedro Pincha perguntou-me se não terá sido sobretudo um problema de mensagem, uma vez que não se pode dizer, de todo, que Joe Biden tenha governado contra os trabalhadores: houve um investimento muito significativo em infra-estruturas e nas energias renováveis em parte responsável pelo crescimento do sector industrial norte-americano e por uma baixíssima taxa de desemprego; perdoaram-se as dívidas da universidade a milhões de pessoas; limitaram-se custos de medicamentos e de seguros de saúde para parte da classe média. E muito mais ficou por fazer apenas por oposição do Congresso e dos tribunais, não por inacção da Casa Branca.
Também foi um problema de mensagem, sim. Não é justo dizer que Biden tenha abandonado os trabalhadores norte-americanos, e é ingénuo pensar que é Trump, a preparar um flagrante assalto oligárquico com Elon Musk e companhia (tema que terá de ficar para outras semanas), que governará para estes. Se uma campanha não consegue explicar isto, como a de Harris não conseguiu, optando por falar em ameaças existenciais à democracia que pouco mobilizaram o eleitor médio, então sim, houve um problema de mensagem.
Mas não apenas. Falar em trabalhadores, ou em classe média, tem de ser mais que falar em emprego e salários, de desindustrialização ou do preço dos ovos e do leite no supermercado. O aumento dos custos da habitação (dos preços, das rendas, dos juros, dos seguros) continua a ser um monstruoso triturador de rendimentos e não teve resposta capaz da Administração Biden, nem uma merecida centralidade na campanha de Harris (ou de Trump, já agora). O aumento dos custos da saúde, das creches e do ensino superior, apesar de medidas paliativas, não cessou.
É todo este somatório, que não é suficientemente reflectido nos números macroeconómicos, nem relevado no discurso político, que penalizou os democratas. Afinal, mais do que votos ganhos por Trump, o que os números têm revelado desde dia 5 é que houve sobretudo votos perdidos pelos democratas.
Descansa em paz, Twitter
A campanha para as presidenciais e o período pós-eleitoral consumaram a transformação daquela que chegou a ser a mais influente e interessante das redes sociais, o antigo Twitter, num mero megafone para o seu proprietário, Elon Musk, ao serviço dos seus interesses comerciais e políticos, bem como num serviço de monetização dos discursos e conteúdos mais vis da internet.
Defender hoje o X como uma plataforma de liberdade de expressão ou uma fonte alternativa de informação é um exercício de desonestidade, ou um atestado de ingenuidade, face à flagrante manipulação algorítmica da distribuição dos seus conteúdos e ao papel que desempenha no processo de captura oligárquica dos Estados Unidos (e não só).
O preço moral e cívico a pagar para continuar a utilizar o X tornou-se demasiado elevado. Os seus benefícios, imensos na era pré-Musk, são cada vez mais residuais. E acresce agora o risco de se tornar numa plataforma de vigilância ao serviço de um Governo, com a entrada de Musk na sua esfera. Não é um processo inédito no universo das redes sociais, onde não há inocentes, mas este é particularmente radical e descarado.
O bom velho Twitter foi um dos meus poucos vícios. Ensinou-me coisas, fiz lá amigos, deu-me oportunidades profissionais. Mas passou há muito o momento de assumir que esse Twitter já não existe e não voltará.
Deixei de usar a minha conta no X, que manterei apenas para evitar a usurpação do meu nome profissional, e migrei para o Bluesky, uma plataforma muito próxima daquilo que o Twitter foi. Mas faço-o sem esperanças desmedidas naquilo que uma rede social é ou poderá vir a ser. Afinal, todas são feitas de pessoas.