Postal de Paredes: artes e ofícios da madeira

A Bienal Internacional das Artes em Madeira de Paredes começa amanhã, dia 12, e termina a 15 de novembro.

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João da Silva
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No centro do espaço, duas famílias rivais, armadas com espadas de pau, estão dispostas em lados opostos, aguardando o sinal para o confronto. Os olhares são de ódio; a tensão no ar é palpável. De repente, as espadas de pau entrechocam-se em movimentos coreografados, desenhando lutas que simbolizam rivalidade, mas sobretudo marcas do território de Paredes.

“A peça Nós da Madeira é inspirada na disputa entre os Montéquios e Capuletos de Romeu e Julieta e narra a rivalidade entre duas famílias do mobiliário de Paredes”, afirma Fernando Moreira, encenador e diretor da Astro Fingido, que teve a gentileza de me convidar para assistir ao ensaio da peça projetada para a Bienal Internacional das Artes em Madeira de Paredes.

O projeto envolve nove grupos de teatro amador e uma IPSS, a EMAÚS, que integra pessoas com deficiência mental, promovendo um trabalho inclusivo no teatro. No total, estarão no palco mais de 60 pessoas, das quais 54 são atores amadores.

Segundo Agostinho Santos, o diretor artístico da bienal, o grande objetivo é promover a madeira na arte, incentivando os artistas a utilizá-la e homenageando dois dos maiores escultores vivos, Zulmiro de Carvalho e Paulo Neves.

“Convidámos cerca de 60 artistas, dos mais conhecidos aos jovens, e ainda alguns artesãos, com o objetivo de criar um diálogo entre todos”, explica Agostinho. “A bienal celebra as artes em madeira, principalmente artistas com currículo e formação, mas também integra algumas pessoas que nós achamos que têm valor, mas que não têm um diploma. Num mundo em guerra, precisamos de paz e diálogo, e esta bienal põe em diálogo artistas, artesãos e algumas empresas de forma a levar a cabo uma iniciativa que junte as aptidões de todos”.

A exposição acontecerá na Casa da Cultura, no centro do município, mas não só: “Houve a preocupação de descentralizar a arte, levando-a a locais mais escondidos, onde a população é diferente da do centro. Como diretor artístico, sinto essa obrigação de democratizar a arte”.

Carlos Ferreira e Manuel Torres, dois dos artesãos convidados, falam com preocupação sobre o futuro da sua arte. “É um gosto para mim trabalhar a madeira e é uma pena que os jovens não se interessem. É triste ver uma arte tão bonita desaparecer. Daqui a uns anos, tudo se fará nas máquinas, mas já não tem tanto valor, pois manualmente conseguimos um pormenor inigualável”, lamenta Carlos. Manuel Torres reforça esta ideia: “Esta arte está em extinção. Mais dez anos e não há artistas. Eu tenho 62 anos e todos os que conheço têm uma idade aproximada, por isso espero que esta bienal possa dar um empurrão para ver se salvamos isto”.

Silvestre Carneiro, presidente da Associação de Empresas de Paredes (ASEP), destaca a força da região na área do mobiliário, mas menciona também que “outras grandes empresas, nomeadamente metalúrgicas e de construção civil”, estão a sedear-se no concelho, o que aumenta o leque de opções de emprego, embora haja “falta de gente para trabalhar”. O responsável da ASEP observa que há cada vez mais trabalhadores de outras nacionalidades devido à escassez de pessoas da região para aprender e executar o trabalho e que é importante sensibilizar os jovens para o mercado de trabalho.

“Já levámos miúdos das escolas profissionais a visitar várias empresas para que percebam a importância de contactar com o mundo do trabalho desde cedo”, explica, reforçando ainda que é crucial valorizar mais as artes. “Há países onde os técnicos de eletricidade e outras artes recebem muito mais incentivo, respeito e valorização do que aqui. Se quisermos, num futuro próximo, ter aquilo que tivemos até agora, temos de valorizar estes profissionais”, conclui.

Papel importante nessa valorização poderá ter o seminário Artes em Madeira, Tradição e Design, coordenado por Nassalete Miranda: “Neste congresso, pretendemos mostrar que a utilização da madeira abrange desde o artesanato até à arquitetura, incluindo grandes obras e projetos premiados, e nos conecta com tradições geográficas, mantendo a cultura e o património vivos. Em Paredes, a madeira é trabalhada no mobiliário, no artesanato e tem sido premiada pelo design. Queremos ouvir quem trabalha a madeira de diversas formas e transformar esse diálogo num momento de partilha e sedução, para nos fazer olhar de forma diferente para a madeira que temos em casa, como portas, janelas, móveis e mesas. Diz-se que os marceneiros estão em vias de extinção, mas quero acreditar que não, e que esta bienal contribuirá para que a marcenaria seja vista como uma arte.”

Uma boa forma de o fazer será através das visitas aos locais onde se trabalha a madeira. Na bienal, haverá dois roteiros que incluem visitas a uma oficina, a um monumento e a uma quinta. “O objetivo é criar uma narrativa que valorize o património natural, material e imaterial e que permita aos visitantes ligar com um novo olhar os contributos do património da região de Paredes. Queremos alcançar isso através das histórias das pessoas das artes e profissões relacionadas com a madeira”, explica Isabel Patim, professora universitária e investigadora, que coordenará as visitas.

E por falar em histórias, tem a palavra Nuno Higino, contador de histórias infantis, que desafiou outros dois escritores — João Manuel Ribeiro e Carina Novo — a criar histórias centradas nas artes da madeira: “As histórias foram entregues a Rita Campos, uma encantadora de histórias que irá dar vida às histórias que serão contadas a alunos do primeiro e segundo ciclos. Os brinquedos protagonistas incluem um cata-vento, uma roda de empurrar com guiador e um cavalinho de madeira”.

Dos brinquedos tradicionais e das histórias para a poesia. “Um dos trabalhos mais aliciantes para mim na literatura e na poesia é investigar o que foi produzido em torno de um determinado tema. E quando este tema está ligado à identidade de um território, como é o caso da madeira em relação a Paredes, essa investigação é ainda mais cativante”, declara Isaque Ferreira. O declamador vai ler poemas de Margarida Negrais, Daniel Faria, Afonso Lopes Vieira, Alberto Caeiro, Ana Luísa Amaral, Alexandre O’Neil, Mário de Sá Carneiro, Vinícius de Moraes e Alberto Hélder, entre outros.

Da declamação ao canto é um sopro. A viagem pelo mundo da madeira de Paredes prossegue com a masterclass do “Coro Feminino – Conservatório de Música de Paredes”, sob a direção artística do maestro Ricardo Sousa: “Vamos fazer uma viagem pelo mundo. Começamos em Portugal, passamos pela Bulgária, China, Nova Zelândia, África e depois voltamos a Portugal”. A viagem musical do coro inclui ainda Gospel, passagens pelo México e Brasil e culmina no Pop rock, explorando estilos tradicionais e contemporâneos de diferentes países. “À primeira vista, um coro e madeira não têm muita relação, mas nós vamos utilizar instrumentos como o adufe, um instrumento português, flautas búlgaras, o piano e o djembê”. Haverá ainda uma sessão aberta onde as pessoas poderão juntar-se ao coro.

O guitarrista Daniel Lemos, outro dos artistas convidados para a bienal, é um apaixonado por madeira: “Se não fosse guitarrista, seria carpinteiro ou marceneiro. A construção da guitarra tem muita ciência e estudo da própria madeira. A minha guitarra tem costas e ilharga em Pau Santo da Índia e tampo em Cedro”. O músico vai orientar uma masterclass de guitarra. “Vamos trabalhar obras de música erudita para guitarra clássica, culminando num concerto no final do dia. Numa parte, vou tocar a solo; na outra, serão os alunos que participam na masterclass a tocar. Gostaríamos ainda de fazer música de câmara com todos os participantes, como se fosse uma pequena orquestra apenas de guitarras”, conclui.

O espetáculo Dentro da madeira que soa reunirá no palco um coletivo de percussionistas, um ator e um grupo amador em residência artística, que tem vindo a trabalhar com os criadores do projeto. “A madeira será trabalhada e manipulada de forma rudimentar, quase primitiva, como nos primórdios da humanidade. Ela é a protagonista, a matéria e o motivo de uma criação artística multidisciplinar que, de forma metafórica, explora as complexidades da experiência humana, permitindo-nos olhar para a madeira além do objeto, da peça que se molda, da cadeira que nos sustenta”, explica Nuno Aroso, diretor do espetáculo.

Igualmente original é o projeto de João Ricardo de Barros Oliveira. Em Fabricasom, o artista vai pesquisar sonoridades em diversas peças de mobiliário, buscando uma mistura de sons das madeiras e ferragens que resultará na criação “plástico sonora” a ser apresentada. “Selecionámos peças de mobiliário na procura do som perdido”, explica. O projeto inclui a criação de uma partitura para a peça, mas mantendo sempre abertura para deambulasons e improvisações. “Há umas diretrizes, mas vamos derivar”, acrescenta, revelando a natureza exploratória da obra. “Sou um criador sem manual de instruções, essa é a minha viagem”, conclui.

A Bienal Internacional das Artes em Madeira de Paredes começa amanhã, dia 12, e termina a 15 de novembro.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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